Foi a milhas de distância do Rio de Janeiro que tomei
conhecimento de Beatriz Milhazes, seu nome e sua obra. Em uma exposição no
Museu de Arte Latinoamericano de Buenos Aires em 2012, as cores vivas dessa grande
artista plástica exaltaram em terras portenhas meu orgulho de ser carioca, conterrânea
de Beatriz. A intensidade, a alegria e o dinamismo de suas telas refletem o
estado de espírito que nós, cidadãos tropicais, conhecemos tão bem. Não há como
sentir-se indiferente aos círculos, listras e estrias vibrantes que parecem
saltar das telas em direção aos nossos olhos, hipnotizando nossa mente.
A rendição ao mundo de cores de Beatriz nas salas do MALBA transportou-me
no tempo e espaço. Por instantes, voltei à década de 70 e avistei, no centro do
Rio de Janeiro, a sala do pequeno apartamento da minha avó. Ali estava eu,
pernas e shorts curtos, rabiscando com gizes coloridos um quadro negro de
brinquedo. Havia também muitos lápis de cor espalhados sobre o mármore branco da
mesinha de centro. E ainda tinta-nanquim cobrindo por inteiro uma folha de
papel úmida, que ao secar seria cuidadosamente riscada com alfinete para
revelar traços do colorido escondido por baixo da tinha. Nas tardes daquele
tempo, enquanto minha mãe trabalhava fora, era na casa da avó que a criança
nada arteira e um tanto artística soltava a sua imaginação e libertava em cores
o seu mundo secreto. Incrível como poucos minutos diante de uma tela me fizeram
a memória regressar tantos anos. Mas é justamente esse o poder da arte: tocar a
atemporalidade da alma e nos fazer viajar sem sair do lugar.
No dia 8 de setembro
de 2013, minha alma novamente inquietou-se com a obra de Beatriz, dessa vez em
nossa terra natal. Não poderia haver
melhor escolha de lugar para abrigar Meu
Bem, uma mostra artística de tamanha vibração, que uma construção cheia de
simbolismos de liberdade. Centro das movimentações históricas da abolição da
escravatura e proclamação da república do Brasil, o Paço Imperial veio
alojar a moderna movimentação de cores que alforriam a mente das formas estáticas
e previsíveis.
Logo no início da exposição surge o impacto de um gigantesco
móbile com flores, miçangas, espelhos, brilho, transparência e cor. De imediato,
invade minha mente a imagem coletiva do carnaval carioca e seus carros
alegóricos. Não imediatamente, assaltam-me os sentidos lembranças particulares
dos meus carnavais passados. Eu, que tinha o sonho adolescente de desfilar em
uma grande escola de samba, não poderia imaginar meu desejo tornando-se real por
tantos carnavais. Durante os quinze minutos em que apreciei a peça, revivi meus
quinze anos de desfile na Marquês de Sapucaí. Meu corpo e espírito fundiram-se em
alegria no Paço Imperial, minha alma sorrindo diante de cada enfeite pendente
que lembrava os adereços e alas do querido Salgueiro na avenida.
Feliz começo de exposição, boas lembranças, belas fantasias.
E assim seguiu meu passeio de domingo pelas salas do velho edifício colonial. Próxima
descoberta: imagens coloridas em recortes de papel. Deparei-me então com o
trabalho de colagem, que não tivera a oportunidade de conhecer na Argentina.
Maior proximidade das obras revelou-me uma surpresa: as imagens eram bem familiares.
Um olhar mais cuidadoso evidenciou o inesperado: papéis de bala e embalagens de
bombons, sobrepostos, ora levemente escondidos, ora claramente expostos.
E brilhou naquele momento o olhar da minha criança curiosa,
gulosa, encantada, buscando no bolso do paletó do pai os chocolates que ele
trazia na volta do trabalho. Os papéis de bombom eram doces pedacinhos de
lembranças que se desembrulhavam em minha mente. Eis a arte brincando com o
tempo.
A brincadeira seguiu pelas colagens de recortes de sacolas
de lojas. Ali minha menina se fez mulher, seduzida pelo mundo da moda e da
beleza. Nomes de lojas internacionais me levaram a locais que conheci e a
outros que ainda visitarei. Novamente a arte a serviço do atemporal; presente,
passado e futuro fundidos no mesmo instante.
Saí da exposição levando o seu colorido em meus olhos e suas
formas em minha mente, como um caleidoscópio de arabescos. Senti-me leve,
alegre, pulsante. Através das pinturas, gravuras e colagens passeei por minha
meninice, adolescência e maturidade, ziguezagueando através do tempo. A viagem
lúdica pelo mundo de Beatriz levou-me ao encontro do meu maior bem: a minha
história. Coisas que a arte bem sabe fazer!