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sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Papai Noel Não Morreu

Deve ter sido o ano 2000 ou 2001. Certamente final do ano, novembro ou início de dezembro, pois o Natal se aproximava, mas o ano letivo ainda não terminara. Escolas, edifícios residenciais, shopping centers e monumentos cobertos de luzezinhas coloridas; renas, trenós, árvores e bolas natalinas por todos os cantos; brinquedos maravilhosos apresentados nas telas de tevê, prontos para serem recolhidos pelo bom velhinho e entregues às crianças comportadas e obedientes na noite mais esperada do calendário anual.
Os adultos podem não se encantar com as imagens de Papai Noel que se proliferam pela cidade nessa época (embora a muitos inconfessos sua figura traga uma terna nostalgia), mas não há criança que se mantenha imune à onipresença do velho barbudo de roupas vermelhas e brancas. E não importa se a estatura do velhinho é variável, se está ora acima do peso, ora um tanto desnutrido, se por vezes usa óculos e por outras, enxerga com nitidez. Papai Noel é único e insubstituível, ainda que sua imagem se multiplique e sua aparência sofra constantes mutações.
Onisciente, ele tem pleno conhecimento do que as crianças pensam e de como agem. E por isso sabe quem merece ou não ter os seus pedidos atendidos na noite de Natal. Com sua onipresença e onisciência, Papai Noel é um pedacinho de Deus, que se personifica no mês de dezembro (E de uns anos pra cá, a partir de novembro – quiçá outubro, passado o dia das crianças). Um outro detalhe a respeito desta ilustre figura é que entra ano, sai ano e Papai Noel não envelhece (mais) e, é claro, não morre! Imaginem que lástima milhares de crianças desamparadas na noite de Natal se Papai Noel morresse. Comoção infinda para crianças, adultos nostálgicos e comerciantes de várias partes do mundo. Que triste pensar na morte do Papai Noel.
Pois foi essa tristeza que inundou Mayara, minha filha, por volta dos seus seis anos de idade. Tudo começou com as costumeiras luzezinhas, as decorações de Natal e todo o clima ao mesmo tempo efusivo e reflexivo que permeia o final do ano. Sensível e esperta, Mayara sempre foi. Envolvida pela atmosfera natalina, sua sensibilidade costumava presentear a nós, familiares, com interpretações teatrais na noite de Natal, como a borboleta pequenina e feiticeira que vinha trazida do rosal nos seus gestos esfuziantes e em sua voz alta, escondendo Marisa Monte, que ecoava ao longe através das caixas do CD player. Nas semanas anteriores ao Natal a que me refiro neste texto, a sensibilidade e esperteza de Mayara me presentearam de uma forma completamente inesperada. Suas reflexões e indagações sobre o velho Noel me revelaram muita clareza e coerência no seu raciocínio tão jovem – sem dúvida um grande presente para esta mãe orgulhosa. Entretanto, o inesperado me surpreendeu de tal modo que eu não soube lidar com o improviso. E o meu despreparo causou em minha filha uma grande tristeza.
A conversa se passou à noite em seu quarto:
_ Mãe, posso perguntar uma coisa?
_Claro, filha. O que é? - Respondi de pronto, sempre disposta a incentivar indagações, curiosidades e diálogo familiar.
_Papai Noel sabe tudo que a gente faz, né?
_ É. - Respondi sem hesitação e sem maiores expectativas de extensão da conversa.
_ Ele vê todo mundo, mesmo sem que a gente veja ele, né?
_É ... – Respondi, agora com alguma hesitação, querendo não entrar em detalhes, mas querendo também não traçar um caminho de inverdades.
Eis que o inesperado começou a anunciar-se:
_Se Papai Noel vê todo mundo, mas ninguém vê ele, se ele sabe o que todo mundo faz, mas ninguém sabe onde ele está, ele é um espírito?
Constatei naquele instante o quanto as crianças são perspicazes. Com certeza Mayara absorvia muito mais as conversas sobre espiritismo que seu padrinho trazia aos adultos do que poderíamos supor. Com ainda mais hesitação, e certo temor do que poderia estar por vir, respondi:
_ Hum ... é ...
A expressão de Mayara começou a modificar-se. Com a testa franzida, os olhinhos apertados e os lábios semi-trêmulos, deu continuidade ao seu pensamento lógico:
_Se Papai Noel é um espírito ... (pausa para a conclusão derradeira) ... ele morreu?
Golpe mortal, em mim e no Papai Noel. Atingida em cheio pela sensibilidade da minha filha, foi-se embora com Papai Noel a minha habilidade materna:
_Ééé... ele morreu.
O mundo veio abaixo. Choro, desespero, desesperança, dor.
_Papai Noel morreu! Papai Noel morreu! - Soluçava Mayara.
Diante da morte do Papai Noel e do desespero da minha filha, eu menos ainda sabia o que fazer ou como agir. Tentei desdizer:
_Não, não é bem assim. É que ele sabe tudo, vê tudo, ele é um espírito, mas ... Eu me enrolava e Mayara não queria mais ouvir. Choramingos daqui, soluços de lá, e logo era hora de dormir.
No dia seguinte, nada se falou sobre o assunto. O silêncio pareceu ser a melhor expressão de luto, da Mayara e meu. Ao deixá-la na porta da sala de aula, como de costume, chamei a professora num canto do corredor e, envergonhada, confessei tudo o que acontecera na véspera. Pedi que ela observasse o comportamento da Mayara e sua reação diante de uma notícia tão brutal.
Passei o dia aflita, na expectativa de como Mayara iria comportar-se e na repercussão que o fato poderia ter para as outras crianças, por toda a escola, nas suas casas, suas famílias. Meu Deus, eu tinha matado o Papai Noel!
No final da tarde fui à escola buscar Mayara. Ansiosa, cheguei à porta da salinha e tia Cris veio me receber.
_ Como foi? Como ela se comportou? – Perguntei apreensiva.
Com a alegria dos vinte e poucos anos, tia Cris disse que Mayara reportou tudo a ela no inicio da aula, mas disse não acreditar no eu lhe contara. E perguntou a ela, tia Cris, se era verdade o que eu havia dito. Ufa! Um enorme peso era liberado da minha consciência naquele momento. Senti-me extremamente aliviada, por mim, por Mayara e todas as crianças. Papai Noel não morreu!
Passada a minha sensação de alívio veio a pergunta: Mas, afinal, o que disse a tia Cris? Que eu não tinha falado a verdade? Que eu tinha criado uma mentira? Uma nova preocupação se aproximava de mim. Eu não queria matar Papai Noel, mas não queria ser uma mãe mentirosa. Tia Cris me explicou, então, como Mayara se convenceu:
_ Mayara, o que nós precisamos respirar para viver?
_O ar, tia!
_E o ar existe?
_Claro, né, tia! Que pergunta!
_Mas você vê o ar?
_Não, né tia!
_E você sente o ar? Sente o vento? Sente o ar frio? O ar quente?
_Sinto!!!
_Você sente, mas não vê. Pois então, Mayara, assim é o Papai Noel. Nós não o vemos todo o tempo, mas podemos senti-lo sempre, sentindo sua bondade. E sabemos que ele existe.
Santa tia Cris! Com certeza o espírito natalino a inspirou para que sua resposta fosse a que foi: singela aos olhos de uma criança, profunda para quem já viveu um pouco mais, e de um modo ou de outro, simplesmente verdadeira.
Daquele dia em diante, não comentamos mais sobre o assunto. Mayara continuou a falar sobre Papai Noel com os mesmos sonhos, fantasias e entusiasmo de antes. E acenava para o velhinho, vivinho, nos shoppings e ruas, aguardando a retribuição do aceno.
Fui sempre muito agradecida à tia Cris, que com seus vinte e poucos anos, sua alegria e descontração, salvou Papai Noel da morte, evitou traumas infantis e maternos, e sabiamente nos lembrou que “há mais entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia”. De fato nem sempre é preciso ver para se reconhecer a existência. Basta sentir. E na sutileza dessa sensação, entregar-se ao que se crê ser verdadeiro, sem reservas.
Que no Natal que se aproxima, nós todos possamos crer na existência do Papai Noel como símbolo das mais belas emoções. E que o seu presente maior para cada um seja acreditar no que se imagina verdadeiro para si, especialmente, o seu próprio ser. Que Papai Noel traga a cada um de nós a crença em si mesmo. Feliz Natal!

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Isto e Aquilo

“Não sei se brinco, não sei se estudo, se saio correndo ou fico tranquilo.” Foi este padrão excludente que adotei na vida desde quando minha memória me permite lembrar. Quando criança, brincar ou estudar eram alternativas que se apresentavam à tarde, após a chegada da escola e a pausa do almoço. Eu poderia brincar e depois estudar. Ou estudar antes de brincar. Aluna aplicada como sempre fui, entretanto, a dúvida logo desaparecia e estudar geralmente se impunha, excluindo a possibilidade de brincar, qualquer que fosse a ordem entre ambas alternativas. Quanto a correr ou ficar tranquila, a segunda opção era sempre a escolhida. Verdade criada por mim mesma, filha exemplar deveria expressar tranquilidade. Caso contrário, ela poderia não ser tão querida. Portanto, a escolha estava feita.
A ótica dualista que adquiri na infância - não me pergunte o porquê – permeou toda a minha adolescência: “Quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares.” E eu geralmente optava por ficar no chão. Movida pela dedicação aos estudos e muita disciplina, foi com os pés no chão que eu passei grande parte dos meus teen ages debruçada sobre a escrivaninha do meu quarto, lendo e estudando enquanto a maioria dos amigos saía para se divertir. Foi com os mesmo pés no chão que fui aprovada no vestibular de Medicina da Universidade Federal Fluminense aos dezesseis anos e decidi abandonar o curso médico pela faculdade de Letras dois anos depois, ainda que sob certo protesto da família. Subir nos ares acontecia sim, embora muito tímida e particularmente. Como boa pisciana, eu não deixei de sonhar.
Atingi a fase adulta. Aos vinte e um anos, inaugurei minha vida profissional, e aos vinte e quatro, casei-me. Desconstruindo os meus próprios paradigmas, consegui conviver bem com a dualidade‘esposa e profissional’ durante todo o meu casamento. Na verdade, a flexibilidade de horário que as aulas de inglês me ofereciam permitia que eu desempenhasse minhas duas funções perfeitamente, sem prejuízo ou a exclusão de uma ou outra.
Passados três anos, iniciei a mais bela etapa de vida que a natureza possibilita a uma mulher: ser mãe. Seduzida pelo encantamento típico dos bebês e inexperiente na função materna, passei a dedicar-me integralmente à minha filha. Nos seus primeiros anos de vida, eu não admitia alternativa aos cuidados e à atenção que dispensava a ela, bem maiores que à minha própria vida particular. E não lamentava que não pudesse estar ao mesmo tempo em dois lugares, pois era com ela que eu queria estar todo o tempo.
Mas o tempo passou, minha filha cresceu e cresci eu em experiência de vida. Hoje entendo que uma escolha não precisa excluir a outra. Peço licença à mestra Cecília Meireles e discordo que “ou se tem chuva e não se tem sol, ou se tem sol e não se tem chuva”. Sol e chuva se combinam num magnífico céu de cores formadas pelos fenômenos de reflexão e refração. São os dois juntos que realizam a mágica do arco-íris para o nosso contemplar.
Hoje olho para trás e penso com muita placidez nas escolhas que não fiz. Brinquei, corri, subi nos ares e cuidei de mim menos do que poderia ter feito, é verdade. Porém, fiz o que pude fazer de melhor em cada momento. Para entender que eu poderia ter feito diferente, precisei crescer e enxergar a vida sob uma nova ótica. Só o passar dos anos me permitiu adquirir essa nova visão. Hoje vejo que é possível brincar e estudar, correr e ficar tranquila, subir nos ares e ficar no chão, dedicar-se aos filhos e a si própria. É tudo uma questão de equilíbrio. Para quem não entendeu ainda qual é melhor: se é isto ou aquilo, pode ter certeza da escolha. Melhor é isto e aquilo.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Homenagem Desadjetivada

Qual é o antônimo da palavra ‘póstumo’? Desde sábado passado venho buscando a resposta para essa pergunta, mas não consigo encontrar. Consultei dicionários e amigos proficientes na língua portuguesa, e nada. Ninguém sabe responder.
Na verdade, essa indagação me ocorreu num almoço de família onde estávamos eu, meu tio paterno, meus dois primos e minha prima. Faltaram meu pai, minha irmã e minha filha para que a descendência de Dona Albacy, minha avó paterna, estivesse completa. E foi justamente a propósito de vovó que minha dúvida surgiu. Durante o almoço, falamos da vó Bacy e suas histórias. Sua irreverência, seu jeito alegre, verdadeiro, matreiro e arteiro. Sua beleza, vaidade, feminilidade e sapequice. Seus amores, afetos e desafetos. Lembranças póstumas.
Ao longo da conversa me peguei pensando quem mais da família tinha aquelas características, quem as teria herdado, ou de quem vovó as teria adquirido. Não lembrei. Não há ou houve outro familiar com tanta leveza e descontração na alma. Pensei então se pude entender tudo o que ela teve a nos oferecer em sua vida. Ou se meus inexperientes olhos míopes, buscando nitidez e correção, pouco enxergaram suas grandes virtudes, vendo como falhas sua aparência de avó pouco convencional. É claro, ela tinha falhas, mas quem não as tem? Que atire a primeira pedra quem for perfeito. E que contenham as mãos os narcisistas!
As memórias póstumas durante nosso almoço me trouxeram à vida. Enquanto conversávamos sobre o passado, pensei no que agora se passa e em quem por mim passa nesse momento. Pensei naqueles que me acompanham em vida. Multidões de rostos atravessaram a minha mente em fast forward: mãe, pai, filha, irmã, tios, tias, primos, primas, namorado, ex-marido, colegas de trabalho, amigos do dia-a-dia, amigos da vez-em-quando, pessoas próximas, pessoas distantes – enfim, muita gente! Pensei se sou capaz de entender o que cada um tem a me oferecer, de bom e de ruim. Pensei se privilegio o bom e ignoro o ruim, ou se supervalorizo o ruim e menosprezo o bom. Pensei também que é possível simplesmente constatar o bom e o ruim - sem julgamento. E que esta é a possibilidade que mais deve merecer a minha atenção, a que me permite desfrutar ao máximo quem está comigo agora. Foi então que me veio a pergunta: Qual é mesmo o antônimo de ‘póstumo’? Quero prestar uma homenagem não-póstuma e não encontro adjetivo para tal.
Segue, então, a minha homenagem desadjetivada. Ela vem repleta de respeito a todos que me acompanham nessa jornada da vida. Homenagem plena de admiração pelos que acertam (quase) sempre, pelos que erram crendo ter acertado, pelos que acertam através do erro, pelos que admitem as falhas e pelos que não as reconhecem. Minha homenagem é aos que estão vivos, pois somente deles tenho a certeza de acertos e erros. Talvez a morte traga a redenção dos equívocos cometidos em vida, mas disso não temos certeza. Que possamos dar valor à vida, então, estando ela errada ou não! Através desta homenagem, queridos e queridas, agradeço a cada um de vocês, que certos ou incertos, exercem sempre algum tipo de influência sobre mim. E pelo convívio próximo ou distante, vou aprendendo, amadurecendo com a troca das nossas virtudes e defeitos. Um brinde a todos nós, errantes viajantes!

domingo, 6 de novembro de 2011

Tempo sem Recuo

Basta me conhecer um pouco para se saber que nem de longe minha natureza é belicosa. Sou uma pessoa da paz – pacífica e apaziguadora. Não gosto de guerra, brigas ou discussão. Entretanto, confesso que sinto um prazer muito singular por certo tipo de luta: a luta contra o tempo.
Meu combate não tem sua causa nas rugas que me vêm surgindo ou nos fios brancos que começam a despontar. Não, minha luta não tem fundamentos estéticos. Ao contrário de tantas mulheres que brigam com o tempo tentando subtraí-lo quando indagadas sobre suas idades, orgulho-me dos meus quarenta e quatro anos (mas admito que adoro quando me dizem não aparentá-los). Luto contra o tempo em função de duas causas próprias: o preenchimento do vazio e o desafio de vencer os meus próprios limites de tempo.
O vazio é o silêncio da alma. E dizem que a dificuldade de lidar com o silêncio é uma doença do mundo contemporâneo. Talvez eu seja mais uma pobre mortal a padecer desta enfermidade moderna. Ou talvez a minha dificuldade nenhuma relação tenha com o século 21. O fato é que o silêncio externo não me angustia. Ao contrário, aprecio a quietude do som e necessito dela, principalmente no início e final do dia. Sou o tipo de pessoa que precisa de silêncio no ambiente ao acordar e ao dormir. O barulho nestes momentos me agita o coração, literalmente. Meus batimentos cardíacos se aceleram e me trazem desconforto. O silêncio externo, portanto, é sempre bem-vindo.
Já o silêncio interno é diferente. Silenciar por dentro é acalmar os pensamentos, deixá-los fluir ou desaparecer por completo, de modo a perder a noção do tempo. Sei que minutos de meditação podem trazer a sensação de horas de repouso. Reconheço os efeitos do estado meditativo e posso senti-los nas minhas práticas de yoga. Minha dificuldade, no entanto, é aplicar a meditação durante o meu dia-a-dia. Permito a mim mesma relaxar a mente, afastar os pensamentos e lidar com o vazio durante minhas práticas, por duas ou três horas semanais. Permitir-me silenciar além disso passa a tornar-se uma ameaça. O que pode acontecer se eu perder o controle de mim mesma? Melhor, então, é combater o vazio, lutando contra o tempo. Por isso, acumulo ocupações e afazeres que passam a preencher minha mente e meu corpo. Preciso de tempo para conciliar estudo, trabalho, compromissos familiares, compromissos sociais e prazeres pessoais. Para dar conta de tudo, corro pra lá e pra cá, dentro e fora de casa. Se não dá para ler o jornal ao longo do dia, a saída é ler as manchetes e notícias curtas enquanto dirijo para o trabalho. Sim, nos sinais vermelhos entre um quarteirão e outro vou lendo alguns parágrafos das matérias. Dentro de casa, enquanto esquento o jantar, coloco roupas na máquina ou separo as roupas para o trabalho no dia seguinte. Tudo vale para brigar contra o tempo e preencher um possível vazio. Tudo vale a pena para a manutenção do controle.
Tendo falado sobre o preenchimento do vazio interno, falo agora da outra razão pela qual brigo com o tempo: o prazer de superar as limitações que o tempo nos impõe. Será possível levantar da cama, tomar banho, acordar a filha, arrumar-se para o trabalho, tomar café, botar comida para o cachorro e sair de casa em trinta minutos? Bem, essa é geralmente a minha rotina de segunda a sexta-feira. Eu poderia acordar mais cedo e fazer tudo com mais calma, certamente. Porém, a possibilidade de superar os limites do tempo deixaria de existir. E com ela o prazer da conquista. Nossa, acabo de entender o porquê de eu estar geralmente atrasada! Busco atingir metas irreais impostas por mim para mim. Será isso mesmo, então? Serão os meus atrasos consequência da minha busca por controle? Será que na tentativa de controle acontece o descontrole? Será?
Surpresa diante de tantas especulações, paro e olho ao meu redor. Estou dentro do meu carro, estacionado na Praça Xavier de Brito, próxima ao colégio da minha filha. Eu a deixei na escola e estava a caminho do trabalho, quando me chegaram as idéias deste texto. Estacionei e comecei a escrever. Meu Deus, perdi a hora! Eu já deveria estar no trabalho! Às pressas, dou a partida no carro, sigo ultrapassando os demais veículos e buscando os sinais verdes. No banco do carona, o Globo do dia. Na página seis, o título da matéria do caderno Opinião me chama a atenção: Caminho sem recuo. O tema em discussão é o controle de armamentos no país. Não tenho tempo para ler as opiniões, pois os sinais estão abertos. Mas me sinto extremamente feliz: minha mente se ocupa do título da matéria e dos “serás” que brotaram no meu texto: Caminho sem recuo, controle do descontrole e descontrole do controle. Estou nutrida de reserva para preencher vários vazios por algum tempo. O suficiente para controlar o tempo por enquanto. Será?

domingo, 23 de outubro de 2011

Réquiem para um Amigo

Dedico este texto a um amigo que já se foi - querido amigo que me acompanhou do início da adolescência aos primeiros anos da vida adulta. Amigo com quem partilhei alegrias e tristezas, ganhos e perdas. Amigo que sempre me acolheu e apoiou, estivesse eu certa ou errada. Amigo que nada cobrava pela sua amizade.
Fomos apresentados um ao outro por meu pai aos meus treze anos de idade. O impacto que sua presença me causou foi visível. Não tive como demonstrar indiferença aos seus pelos loiros e sua compleição robusta, típicos da descendência alemã. Ele era simplesmente lindo! Papai também reconhecia o seu encanto, por isso compreendeu a minha reação.
Mas não foi somente sua aparência física que me impressionou. Na verdade, o seu jeito brincalhão me cativou de imediato. Ele era inteligente, perspicaz e muito divertido. Eu passei a pensar nele todos os dias e queria estar em sua companhia a todo instante. Foi assim que entendi que nos tornaríamos grandes amigos.
E minha profecia realmente se cumpriu. Fomos crescendo juntos, num convívio cada vez mais estreito, estabelecendo códigos decifrados somente por nós dois. Não havia segredo meu que ele não soubesse ou desejo seu que eu desconhecesse. Trejeitos valiam mais que palavras e olhares bastavam por si sós. Eu entendia sua tristeza ou alegria, ele entendia minha admiração ou reprovação. Cuidávamos um do outro com atenção e carinho.
Ele participou da minha vida como ninguém mais. Acompanhou meus estudos na escola e no curso pré-vestibular, suportando minha ansiedade e preocupação a cada véspera de prova. Conheceu os amigos que eu tive e os que eu pensava ter. Presenciou o surgimento do meu primeiro amor e a desilusão da sua perda. Dividiu comigo a conquista de uma vaga no curso de Medicina e minhas dúvidas em levar a faculdade adiante ou não. Chorou comigo a separação dos meus pais. Assistiu à minha aprovação no concurso para o Banco Estadual do Rio de Janeiro e compreendeu minha (in)sensatez ao abrir mão do emprego público. Respeitou a minha escolha por um novo rumo profissional. Participou da despedida do meu avô. Aprovou o meu primeiro namoro sério e presenciou minha saída de casa para iniciar com meu marido minha vida de casada.
A partir do meu casamento, eu e meu amigo começamos a nos separar. Embora a princípio ainda nos encontrássemos toda semana, com o passar do tempo nossos encontros se tornaram mais escassos. Entretanto, eu tinha sempre notícias suas. Ainda que de longe, eu acompanhava a vida do meu grande amigo, apesar de ele não mais acompanhar a minha.
Assim eu soube que ele vinha se sentindo solitário, deprimido, aprisionado em seu apartamento, muitas vezes sem alguém com quem dividir a sua tristeza. É claro que eu teria que agir de algum modo. Eu precisava retribuir ao menos parte da alegria que ele me trouxera tantas vezes. Embora com afazeres no trabalho, na nova faculdade e em casa, passei a buscar sempre um tempinho para visitá-lo com certa frequência. Saíamos algumas vezes para passear e nesses momentos ele se sentia feliz. Eram passeios curtos, porém suficientes para alegrá-lo.
Na noite de 05 de dezembro de 1992, o telefone tocou no meu apartamento. Do outro lado da linha, a minha irmã. Nervosa, com a voz trêmula, custou-lhe alguns segundos falar com clareza. Por fim, eu pude entender. O Óscar estava imóvel, deitado atrás da porta da sala, como se estivesse dormindo. Ela já tinha chamado pelo seu nome várias vezes, mas ele não respondia. Sozinha em casa e com receio de confirmar sua suspeita, minha irmã não quis se aproximar dele. E nem era preciso. Nós duas já tínhamos entendido o que acabara de acontecer. Pedi calma à minha irmã e fui imediatamente ao seu encontro.
Chegando ao apartamento, encontrei meu amigo conforme descrito por minha irmã. Sereno, ele dormia para não mais acordar. Naquela noite, Óscar repousou seu corpo velho e cansado no apartamento dos meus pais, onde ele viveu toda a sua vida e eu, grande parte da minha. O corpo robusto do meu querido cão boxer foi desfeito em cinzas no crematório da clínica veterinária. Sua alma foi levada para o Reino dos Animais, vigiado e protegido por São Francisco de Assis. E sua imagem, guardada com carinho para sempre na minha memória e no meu coração.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Lua dos Namorados

Aconteceu na madrugada de 13 de junho de 2011, entre três e quatro horas da manhã, pela terceira vez. Sua luz penetrou pela fresta entre as cortinas de persianas que cobrem a janela do meu quarto. Nas duas primeiras vezes, assustei-me com o clarão que acordou meus olhos, sem entender o porquê. Desta vez não. Abri os olhos lentamente, como se aguardasse aquela visita já familiar.
Deitada na cama, exatamente de onde eu estava, pude ver a rainha de prata exibindo-se no céu. Qualquer pequeno movimento meu para a esquerda ou direita me faria perdê-la de vista. Era bem ali onde eu estava que seus raios argênteos conseguiam iluminar o meu rosto. Não quis dormir, para poder apreciá-la, mas também não quis despertar completamente, para manter o entorpecimento agradável que misturava sonho e realidade em minha mente.
Foi esse estado idílico que me trouxe música aos ouvidos. Não qualquer música, mas o verso “A lua é dos namorados”, da antiga marchinha de carnaval. Poderia tratar-se de uma referência inconsciente ao dia dos namorados, que acabara há poucas horas, ou ao dia de Santo Antônio, que mal começara. Mas não foi isso.
A luz de prata iluminando meu sono aguçou meus sentidos e transportou-me através do tempo. Lá estava eu, ano de 1977, na casa de praia da minha família em Itaipu, região oceânica de Niterói. Noite de céu claro, lua de prata sobre o jardim e o portão de entrada onde estávamos nós três. No fundo do terreno, a silhueta da casa com a claridade de lampiões no seu interior. A luz elétrica não chegara ainda à roça. O toque quente das minhas mãos em mãos jovens como as minhas e em mãos mais velhas, porém suaves. Cheiro de noite no mato e som de sapos e grilos. Rompendo a quietude da natureza, o verso “A lua é dos namorados”. Verso acompanhado de movimento e ritmo. Movimento de roda: eu, minha irmã e vovó Bacy de mãos dadas dançando sob o luar. Ritmo de vozes infantis regidas pela voz melódica da vovó. Lá estava ela, maestrina do coro de duas vozes, rodopiando e cantando: “Lua, oh lua, querem te passar pra trás. Lua, oh lua, querem te roubar a paz. Lua que no céu flutua, lua que nos dá o luar. Lua, oh lua, não deixe ninguém te pisar.” Chegava, então, o momento mais esperado da canção: “Todos eles estão errados, a lua é dos namorados.” Nós três rodávamos em velocidade, uma puxando as outras na mesma direção ou em ziguezague. Misturado à canção, o som dos nossos risos de alegria. Acabada a música, pedíamos à vovó que começasse novamente a sua regência. E assim reiniciávamos a roda, mais uma vez e outra vez, até que a primeira de nós se cansasse - vovó, minha irmã ou eu.
Naquela noite de junho, a primeira a se cansar foi vovó Bacy. Com seu rosto sardento corado e suado de tanto rodar, deu sua gargalhada típica e anunciou que voltaria para casa. Disse que seus amigos a esperavam para uma partida de buraco, que ela tanto gostava de jogar. Soprou um beijo dos lábios vermelhos de batom, enviado com carinho pelos dedos com unhas longas e bem feitas, como sempre. Virou-se de costas e seguiu pelo jardim da casa. Na penumbra da noite, procurei o rosto da minha irmã. Sorridentes, nos olhamos em cumplicidade.
O torpor que me envolvia o corpo era então não só o misto de sonho e realidade, mas uma grande sensação de saudade. Abri os olhos completamente e encarei a senhora de prata pela fresta da janela. Minha visão ficou turva com as lágrimas que chegaram. Totalmente consciente naquele momento, agradeci à lua dos namorados pela visita que ela me fez e pela visitante que trouxe junto a si.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Os Previteras

Eles fizeram parte da minha história. Especialmente Ledinha, uma das filhas de um casal com um menino e duas meninas. Os cinco moravam no centro da cidade, Edifício Três de Outubro, apartamento 303, vizinho ao da minha avó.
Embora minha razão infantil não tivesse consciência do porquê, a família me inspirava um sentimento desconhecido e agradável. Na verdade, era o despertar da minha sensibilidade, permitindo-me intuir a os laços de afetividade que me uniriam por anos àquelas pessoas.
Seu Gilberto era o provedor da casa. Trabalhando num quartinho ao pé da cozinha, vivia rodeado de quinquilharias eletrônicas inacessíveis e deslumbrantes. Fios, cabos, fusíveis, válvulas, antenas, pilhas e um mundo de miniaturas coloridas transformavam-se em cidades futuristas ou planetas robóticos na minha imaginação. O ofício de consertar rádios complementava a renda de um militar reformado precocemente. Era um homem reservado, com mãos e olhos focados no seu mundo iluminado pela lâmpada de um fio pendurado sobre a mesa.
Dona Leda cuidava da casa e dos filhos. Alegre, expansiva e bem-humorada, tinha sempre algum assunto para conversar com minha avó. Para ajudar o marido nas despesas da família, fazia bolos de aniversário. Foi com ela que minha mãe aprendeu a fazer e confeitar os bolos dos nossos aniversários.
Jorge, a criança mais velha, era muito semelhante ao pai em aparência e temperamento. A pele parda, os cabelos crespos e o nariz núbio guardavam criatividade, discrição e certo sarcasmo, que vim a conhecer quando eu já tinha mais idade. A habilidade com aparelhos eletrônicos, herdada do pai, revelou-se através dos aparelhos de som, que Jorge manuseava com facilidade ao tocar os discos que colecionava. Distantes, como éramos na época, eu mal podia imaginar que na minha adolescência nós iríamos estar juntos algumas vezes para dividir o mesmo gosto pela pista de dança.
Inês era a filha do meio. Misturada em aparência com o pai e a mãe, era arteira, desafiadora e namoradeira. Inês não pertencia ao meu mundo de faz-de-conta na sala do apartamento. Ela pertencia ao mundo dos piques na rua, que eu era impedida de frequentar pelos meus pais. É incrível como sete anos de diferença são um abismo de tempo quando se tem cinco ou seis anos de idade!
Já Ledinha, a caçula, era parte integrante do meu mundo. E muito mais do que isso, ela era a minha melhor amiga. Minha primeira amiga! Tendo um ano a mais que eu, Ledinha era muito experiente e me ensinava coisas que eu não sabia. Minha irmã, a mascote do trio, ficava enciumada quando nós duas conversávamos coisas de meninas grandes, que Cristina não podia ouvir. Mas logo estávamos as três brincando e o ciúme passava.
As brincadeiras aconteciam todas as tardes no apartamento da vovó, com o mesmo código de começo e fim: batidas na parede que dividia um apartamento do outro. Vovó dava o sinal de início, indicando quando Ledinha podia vir e Dona Leda dava o sinal de término, indicando quando ela deveria voltar para casa. Ao final da tarde, lá se ia a minha amiga, levando consigo as marias-chiquinhas curtas e as covinhas de menina travessa. Nossas mãozinhas balançavam no ar num sinal de despedida até o dia seguinte.
Foram muitos anos de brincadeiras e cumplicidade, até que a família vizinha mudou de endereço. Foram morar na Ladeira João Homem e nosso contato diário se desfez. Algum tempo depois, meus pais, minha irmã e eu nos mudamos de bairro. Foi então que a distância entre mim e os Previtera ficou ainda maior. Nosso contato praticamente se perdeu, seguido da perda do Seu Gilberto e, anos depois, da Dona Leda.
Das brincadeiras no Três de Outubro até hoje, foram muitos os caminhos que se apresentaram na estrada da vida. Jorge e eu estivemos juntos em alguns momentos da minha adolescência, mas nos perdemos pela estrada. Reencontrei Inês na minha fase adulta, quando pudemos finalmente compartilhar os nossos mundos, já não tão diferentes. Quanto à minha primeira amiga, estivemos juntas na adolescência mas fiquei muitos anos sem saber os seus caminhos a partir dali. No entanto, laços tão fortes de afetividade não permitem que as pessoas se percam por completo. Nosso reencontro aconteceu com um presente para cada uma de nós: ela me presenteou com sua filha e eu a presenteei com a minha. Atualmente, passamos por períodos de maior ou menor aproximação ou afastamento, dependendo dos nossos percursos. De qualquer modo, acenamos sempre uma para a outra, como no final das brincadeiras de criança, sinalizando um até-breve.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Ana Paula e Calí

Fácil foi apaixonarem-se. Difícil foi ela reconhecer aquele sentimento tão distante e inesperado.
Fácil foi o desejo de se falarem todos os dias. Difícil foi ela entender que o seu autocontrole rendia-se à impetuosidade desconhecida.
Fácil foi a atração entre o homem sonhador e a mulher ponderada. Difícil foi alcançarem o equilíbrio entre o sonho e realidade.
Fácil foi a admiração pelas diferenças entre ambos. Difícil foi aceitá-las sem julgamento.
Fácil foi o crescimento da intensidade do sentimento. Difícil foi lidarem com as inseguranças do novo.
Fácil foi a exposição dos corpos. Difícil foi ela expor a sua alma.
Fácil foi o início de uma relação. Difícil foi imaginar que daria certo.
A ela faltava tempo para absorver as mudanças súbitas que aconteciam na sua vida e acreditar que ele era sincero nos seus sentimentos. A ele faltava confiança para dar a ela o tempo de que precisava. Por dois anos foram idas, vindas, desentendimentos e desencontros, gerados pelo medo da entrega de cada um. Quando juntos, era atração incontrolável e paz intensa. Quando separados, restava inquietude e impaciência. Mas, de perto ou de longe, nunca faltou amor.
Pouca gente apostou no relacionamento entre uma mulher comedida e um homem irreverente. O que ninguém sabia, entretanto, é que ela precisava de extravagância na vida para soltar as suas amarras, e ele precisava de equilíbrio para trazê-lo de volta ao seu eixo. Sem que eles próprios tivessem consciência, um precisava do outro.
Ele sabia que queria felicidade de fato. Nos versos que compusera antes de conhecê-la, ele dizia querer “algo novo, que fizesse tremer as estruturas da terra e arredores, que fizesse o vento ventar, o mar se descabelar, o sol arder em cores e torrar as torres”. Ela não sabia bem o que queria, mas tinha o desejo adormecido de rir, chorar, sentir prazer e dor, enfim, viver. A proteção contra os seus desejos secretos eram as armaduras que não permitiam que ele a conhecesse por inteiro. Ela queria viver, mas tinha medo de sofrer. E não entendia que ele queria viver e ser feliz, com ela.
O tempo foi trazendo aos poucos a segurança que cada um precisava na relação com o outro. Ele, com sua sensibilidade e espontaneidade, foi conseguindo atravessar e romper as armaduras dela. Ela, livrando-se gradativamente das suas amarras, passou a revelar-se cada vez mais. E um foi expondo ao outro a sua essência. Foi surgindo entre eles um dos mais profundos sentimentos que pode unir um casal: cumplicidade. Juntos, eles não são um só, como muita gente acredita dever ser uma relação. Eles mantêm cada um a sua individualidade, porém acrescentando ao outro o que pode ser melhor.
Não se sabe exatamente quando os fantasmas que assombravam o relacionamento se foram por completo. O fato é que vivem hoje uma relação sem assombrações e são agradecidos à vida pelo encontro que tiveram e como vêm evoluindo juntos. No sábado passado, dia primeiro de outubro, completaram seis anos de namoro. Comemoraram a conquista de mais um ano de descobertas, afeto, respeito, alegrias, confiança, companheirismo e muito desejo. O que esperam daqui para frente é manter acesa a chama dessa relação por muitas velas de aniversário.
Parabéns para nós, meu amor!

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Três vezes Nova York

Junho de 1992 . Jornal casualmente aberto na página de um anúncio da agência de turismo Soletur: pacote de sete dias incluindo passagem aérea, hospedagem, traslado e city tour. Preço cabível nas economias de uma estudante de Letras pela manhã e professora em curso de inglês americano à noite.
Inesperadamente, as portas para a realização do meu grande sonho se abriam. Com a quantia necessária para viajar (ainda que sem extravagâncias), a disponibilidade de tempo (já que eu entraria de férias em breve) e o passaporte e visto válidos (retirados para visitar a Disney em lua-de-mel), eu mal podia acreditar que aquilo por que eu esperava desde os primeiros anos de estudo de inglês estava prestes a acontecer. E foi assim o início da realização do meu sonho de conhecer Nova York.
Meu parceiro de viagem não poderia ser outro senão aquele que havia provocado em mim a razão do meu desejo. Afinal, meu pai foi quem, na minha adolescência, me despertou a paixão pela língua inglesa e o sotaque americano, dando origem ao meu sonho de visitar a mais famosa cidade da mais imponente nação de falantes de inglês. Papai gostava de estudar inglês e imitar a pronúncia anasalada dos americanos, mas nunca tinha viajado aos Estados Unidos. Aposentado, dispondo de tempo e economias, meu pai prontamente aceitou embarcar comigo no meu sonho.
Em poucos dias o pacote de viagem e as malas foram fechados. Logo estávamos desembarcando no JFK e seguindo de Queens a Manhatan. Nossa chegada à ilha foi triunfal! Avistar os dois prédios mais altos do mundo sob a voz de Frank Sinatra na canção-ícone da cidade foi acreditar que tudo era possível. Minha emoção era tanta que meu coração disparava, meu olhos lacrimejavam e minha voz falhava.
Caminhar sob as luzes de Times Square tornou real a sensação que por tanto tempo eu tivera durante as minhas noites de sono. Sim, eu já tinha estado em Nova York muitas vezes enquanto dormia. Mas nada se comparava a estar lá de corpo e alma presentes. Meu entusiasmo era como o de uma criança que acredita ser possível mergulhar na tela de cinema e tornar-se personagem do filme. Ali estava eu: personagem do meu próprio filme.
Na ânsia de desfrutar aquela experiência ao máximo, vencer o relógio era fundamental. Era necessário dormir pouco, andar rápido, fazer refeições breves, qualquer coisa que justificasse render o tempo. Afinal, eu estava em Nova York, a cidade que nunca dorme. E queria explorar o máximo possível: a imponência dos arranha-céus, a imensidão do Central Park, as dezenas de taxis amarelos, o corre-corre cotidiano do povo, o talento dos artistas de rua, a diversidade de tipos físicos, os sanduíches nas calçadas em contato direto com as mãos, a magnitude dos espetáculos da Broadway. Enfim, tudo que me permitisse levar um pouquinho da cidade de volta comigo. Como Christine, seduzida pelo fantasma da ópera, eu voltei ao Brasil completamente hipnotizada pela cidade dos grandes musicais.

Janeiro de 1994. Dois anos após meu debut em Nova York, voltei à cidade com mais cinco pessoas: meu marido, seu tio, minha mãe e duas amigas dela. Eu era a única do grupo que já tinha estado lá. E aquela era justamente a oportunidade que eu queria para dividir com as pessoas o meu encanto pela cidade. Planejei os passeios, organizei os horários, orientei os trajetos. Ser uma guia de turismo naquela ocasião foi um grande prazer, pois validava o meu conhecimento da cidade. E que orgulho eu sentia por aquilo!

Julho de 2011. Desta vez levei comigo minha mãe e minha filha, num encontro de gerações acontecendo na cidade dos meus sonhos. Foram muitos anos passados desde a minha última visita. Nesse período de tempo, o mundo mudou, os Estados Unidos mudaram, Nova York mudou e eu mudei. Livros originais em inglês, antes acessados somente através de importação, agora podem ser lidos na tela do computador. Os Estados Unidos, por décadas considerados inabaláveis, hoje carregam a insegurança de ataques terroristas. Nova York, por muitos anos símbolo de poder, mantém ainda a lembrança dos seus mais altos edifícios sucumbindo em poucos minutos. Quanto a mim, foram novas experiências profissionais com a língua inglesa, visita a outros países, filha, mudança de casa, separação, nova mudança de casa, namorado, novos amigos. Voltar a Nova York diante de tantas modificações externas e internas foi uma grande surpresa. Eu esperava reviver as emoções das duas primeiras vezes. Imaginava sentir-me mesmerizada como antes. Mas não foi bem assim. Constatei que meu sentimento pela cidade ainda é forte, porém menos impulsivo e mais amadurecido. A paixão cega transformou-se em amor de olhos abertos. Enxerguei a cidade com todos os seus encantos e também os seus defeitos. Em meio ao verão com índices recordes de calor, pude perceber o consumismo desenfreado dos turistas, o número exagerado de imigrantes em trabalhos menos prestigiados e o ritmo histérico das pessoas. Confesso que o momento em que me senti realmente presente foi quando me sentei no gramado do Central Park e respirei fundo. Por segundos, a tranquilidade do cheiro da natureza me fez esquecer a agitação do mundo de concreto. Naquele instante, senti no corpo o arrepio que me veio nas primeiras vezes em que havia estado na cidade. Mas pude perceber que os meus sensores hoje são outros. Encanto-me com a contemporaneidade e o vanguardismo de Nova York, assim como os museus e suas relíquias. Gosto do consumo, da tecnologia e da culinária de toda parte do mundo. Mas preciso de pausa, reflexo do meu próprio comportamento diante da vida hoje.
Voltarei a Nova York assim que possível. Afinal de contas, há anos nós mantemos um relacionamento que foi amadurecendo aos poucos: evoluiu do platonismo à paixão e da paixão ao amor. Amor sereno, maduro, consciente, onde é fundamental que cada um reserve tempo para si próprio, respirando sozinho, sem depender do outro.

domingo, 25 de setembro de 2011

Mania de Escrever

Recentemente estive pensando na minha relação com a escrita e me peguei numa viagem de volta no tempo. Num turbilhão de pensamentos em retrospectiva, fui levada aos bancos da minha primeira escola. Foi lá onde tudo começou.
Eu tinha cinco anos quando as letras do alfabeto me foram apresentadas. Como gostei de conhecê-las e descobrir o poder que tinham de transformarem-se em palavras! Cuidadosamente selecionadas e unidas, as letras eram capazes de conceber os embriões de um novo mundo que se desvendava sob meus olhos de criança. Mais tarde aprendi que da união de palavras surgiam frases, o que me permitia organizar pensamentos silenciosamente no papel. Soube depois que frases relacionadas entre si originavam parágrafos, que, por sua vez, podiam levar ao nascimento de um texto completo. Finalizada a gestação do primeiro texto, estava revelado o processo de criação da escrita. E iniciada a minha mania de escrever.
Meus primeiros textos foram produzidos na sala de aula da escola, mas foi na sala de estar ou no quarto de dormir da minha casa que eu sempre gostei de escrever. Ali eu podia expressar meus sentimentos e observações da vida de maneira segura: minha casa era a fortaleza necessária contra as ameaças do mundo e a escrita era o escudo protetor contra a exposição da minha natureza tímida. Assim a escrita foi-me acompanhando ao longo dos anos e me permitindo registrar a minha história: inexperiência e vivência, ingenuidade e malícia, insegurança e assertividade, tristeza e alegria, ódio e amor, perdas e ganhos. Foram textos de diferentes tipos e finalidades: bilhetes de criança declarando amor à família, relatos das descobertas adolescentes no diário secreto, rimas de amor para o namorado, poemas para a filha em gestação, cartas cobrando explicações não ditas, e muitos mais. Alguns dos registros estão mantidos comigo, outros foram perdidos, deliberadamente ou sem querer.
Hoje, pensar na minha relação com o ato de escrever é refletir sobre mim mesma, minhas características internas e jeito de ser. É reconhecer a minha introspecção e necessidade de solitude de tempos em tempos. É admitir o meu potencial criativo por mais que minhas inseguranças tentem reprimi-lo. É declarar o dilúvio de emoções que jorram dentro de mim, ainda que eu queira transparecer a placidez de um lago sereno. É expor-me para mim mesma, sem disfarces.
Escrever é, afinal, poder contar minha história pessoal com a impressão de uma marca própria. Desde os meus primeiros textos até hoje muita coisa mudou na forma de contar os capítulos do meu livro. Meus pontos-de-vista se modificaram e minhas observações do mundo já não são mais as mesmas. Certamente eu sou uma pessoa diferente daquela de anos atrás. Mas permanece em mim essa mania de escrever. E, com ela, a possibilidade de contar novas histórias ou recontar as velhas lembranças sob um novo olhar.