Powered By Blogger

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Brava Gente Brasileira

Vitória, 06 de outubro. Dia seguinte ao primeiro turno das eleições 2014 no Brasil.
Acabo de sair do aeroporto.
_ Taxi, senhora?
_ Sim. Estou indo para Guarapari.
_ Nossa tarifa é fixa. Venha comigo. Pode entrar, que eu chamo a moça para lhe entregar o recibo.
O tipo amulatado, alto e robusto chamou minha atenção por algum motivo. Pude sentir gentileza no seu tom de voz e suavidade por trás do corpo volumoso. Balancei a cabeça, indicando que concordava. Ele segurou minha pequena mala e a repousou no banco de trás do Doblò, onde sentei-me em seguida.
Iniciei o que eu esperava ser uma breve interação, como normalmente faço em viagens de taxi mais longas, para ganhar a simpatia do motorista de quem estarei refém por algum tempo.
_ O tempo está bem fechado! Tem chovido por aqui?
_ Um pouco. Mas logo abre o sol quente. E à noitinha chove de novo.
_ Mas o bom é que aqui é sempre fresco! Estou indo visitar meu pai. Ele mora em Guarapari.
_ Ah, que beleza! Ele é daqui?
_ Nasceu em Vitória, foi pro Rio menino e voltou quando se aposentou.
_ É, a gente quer sempre voltar pras nossas raízes. Eu tô doido pra me aposentar e voltar pra minha terrinha.
_ O senhor é de onde?
_ Teófilo Otoni, em Minas Gerais. Sou mineiro, uai! Na minha cidade todo mundo conhece todo mundo. A gente sabe que Fulano é filho de Sicrano, que é casado com Fulana. Ô coisa boa! Lá o sujeito passa pela porta da igreja e faz o sinal da cruz. Quantas vezes ele passar, tantas vezes vai fazer! Lá existe respeito, gente honesta! Aliás, honestidade é coisa rara! E nesse ramo de taxi então, ih... o capeta vive tentando a gente! Se bobear, ele te pega!
Percebi nesse momento que o motorista era daqueles que gostam de conversar e que a viagem seria movimentada. Quase me arrependi de ter iniciado a conversa, mas era tarde demais.
_ Pois a senhora sabe que outro dia peguei um sujeito muito bem vestido bem ali onde peguei a senhora? De terno, gravata e uma maleta 007. Ele veio perguntando sobre a minha vida, se esse carro aqui era meu. Eu disse que não! Tenho dinheiro pra ter um carro meu não! Então ele me disse que ganhar dinheiro era muito fácil. E abriu aquela maleta cheia de notas! Vixe Maria, moça! Eu nunca tinha visto tanto dinheiro junto! Fiquei até nervoso!
Diante da eloquência do meu interlocutor, achei melhor lançar mão do meu cardápio de interjeições e deixar que ele continuasse seu discurso. Falei simplesmente:
_ Nossa!
E ele continuou:
_ Num é que ele me disse que era tudo falso?! Eu arregalei o olho e não quis saber não! Olha, dona, tenho um medo de polícia que me pelo! Esse negão grandão que a senhora tá vendo se treme todo na frente de polícia. Se eu fosse metido em encrenca, bastava a polícia chegar perto de mim e eu confessava tudo, tudinho! Fui criado assim. E crio os meus filhos do mesmo modo! A menina tá encaminhada, casada. O menino ainda tá se formando... arruma uns biscates pra ajudar em casa de vez em quando. Eu sempre falei pra eles: "Se rico rouba, não acontece nada porque ele tem dinheiro pra pagar advogado. Já o pobre rouba e não tem jeito. Morre na cadeia. Com razão ou sem razão!" Sou filho do Seu Antônio, moça. Meu pai me criou no bem!
Comecei a gostar daquela conversa, mas não ousei fazer perguntas. Curiosa para saber o que viria adiante, continuei sacando minhas interjeições:
_ Isso mesmo!
_ Eu fui criado na roça, moça. Ajudava na lavoura. E só calcei um sapato com doze anos de idade! Vim pra cá tentar a vida e trabalhei muito. Mas sempre com honestidade! Eu era jardineiro numa casa e todo mundo gostava de mim. Eu lavava o carro dos meninos nas horas vagas. Eles gostavam de mim. Um dia virei pra eles e disse: Olha, eu só vou continuar a lavar o carro d'ocês  se ocês me ensinarem a dirigir. Esse negócio de eu ter que chamar pra manobrar toda vez que é preciso mudar o carro de lugar não dá certo não! Vocês não vêm e eu atraso o meu serviço. E num é que foi assim que eu aprendi a dirigir? E me tornei o motorista da família!
_ Que bacana!
Ainda sem mais perguntas - e sem saber seu nome - eu ia me interessando pelas histórias do cabloco.
_ Eu levava a Dona Fátima pra tudo que era lugar. E ela gostava de mim. Queria sempre me dar uns trocados no final da corrida. Eu dizia que não, porque eu já recebia dinheiro do patrão. Mas ela ficava braba, insistia. Um dia fui falar com o seu Fernando o que tava acontecendo. E ele disse 'Se minha mulher quer lhe dar dinheiro, aceite! Deixe ela!' Sabe, dona, fiquei mais tranquilo de saber que o seu Fernando sabia. Eu não queria nada escondido não!
Assim foi também quando conheci minha mulher. Eu quis logo conhecer o pai dela e falar das minhas intenções. Mulher moderna da capital, ela disse que não precisava. Mas eu só sosseguei quando fui falar com o pai dela. E, olha, tem vinte e cinco anos que estamos juntos e os pais dela me adoram. Eles sabem que podem confiar em mim. É Edmilson pra lá, Edmilson pra cá.
Ah ... Edmilson é o seu nome (pensei).
_ É isso aí, Edmilson.
_ Sabe, moça, quando o caçula tinha seis anos, ele cismou de ir comigo mais minha mulher ao supermercado. Eu não queria levar, mas a mulher insistiu. Era a primeira vez que o moleque ia a um mercado. E então eu tive uma conversa séria com ele. Expliquei que ele ia ver muita coisa diferente. Biscoito, bala, iogurte... Mas ele não podia pedir nada não! Se sobrasse dinheiro no final, eu podia comprar alguma coisa. Mas ele NÃO podia pedir!
_ Tá certo!
_ Pois bem, chegamos lá e começou tudo direitinho. Primeiro corredor, segundo corredor... Moça, num é que no terceiro corredor o menino endoidou?! A gente passou pelos doces e os olhos dele começaram a brilhar. Ele virou pra mim e começou 'Eu quero aquele! E aquele! E aquele!' Lembrei a nossa conversa e pedi pra ele ficar quieto. E ele continuou. Balançava o corpo, balançava as pernas. E começou a gritar. Que queria, que queria... Ah, dona, me deu um negócio... Eu segurei ele pela orelha, fui puxando, fui puxando, fui puxando... E já ia tirar o moleque do chão, quando ele parou. Eu olhei firme pra ele e disse: O que foi que lhe falei? SÓ se sobrar dinheiro! PÁRA com isso!
_ Que coisa!
_ Mas olha, até hoje, que ele tá com dezenove anos, quando vai comprar uma coisa, me pergunta o que eu acho que é melhor. Num pode dar mole não! Essa garotada tem que aprender!
_ É isso!
_ Eu é que sei, que virei a noite na porta da UFES pra conseguir pra ele uma vaga no curso de inglês.
Ai, Edmilson falou em educação! Estudo de inglês! Meu interesse de fato se fez. Não resisti e perguntei:
_ O senhor conseguiu? Ele estuda inglês?
_ Tá estudando sim, senhora! E de graça! Vai aprender inglês! E depois vou juntar dinheiro pra um curso de informática. Hoje é tudo computador, né?  Com computador e inglês, ele vai ganhar dinheiro.
_ Isso mesmo!  (Minha interjeição foi enfática e genuinamente verdadeira!) O inglês é muito importante, Edmilson. Abre muitas portas de trabalho!
_ Dona, eu sei escrever e sei ler. Mas não entendo direito o que eu leio. Sou analfabeto funcional. Mas meu filho vai ter um futuro melhor!
Foi nesse momento, que minha isenção chegou ao fim. E fui eu quem começou a falar:
_ Você está certíssimo, Edmilson. O seu filho vai ter um futuro melhor! Insista pra que ele estude. O estudo é o que faz a gente crescer na vida. E o que a gente aprende ninguém tira da gente. A honestidade que você passa pra ele é também uma riqueza que ninguém vai lhe tirar. Parabéns pela pessoa que você é, Edmilson. Parabéns pelo modelo que você passa para o seu filho. Esse menino vai ser gente na vida!
Edmilson virou o rosto pela primeira vez durante toda o trajeto. Olhou-me nos olhos com orgulho e agradeceu. Parou o carro, em seguida.
_ Chegamos.
_ Mas já? (Meu pensamento falou alto.)
_ É, a conversa tava boa e a gente nem sentiu a viagem!
Saí do carro, paguei a corrida, e recebi um caloroso aperto de mão. Retribui o cumprimento de coração.
Entrei no prédio do meu pai e fiquei pensativa por alguns instantes. Imaginei quantos Edmilsons nascem, e quantos de fato sobrevivem em um país repleto de tentações.
Pensei no dia anterior, e nos milhões de brasileiros que foram às urnas na expectativa de um futuro melhor para os seus filhos. Senti um enorme aperto no peito. Quisera fosse a emoção pela certeza de um Brasil promissor! Mas foi um grito sufocado no misto de dúvida e esperança.
Respirei fundo e fiz uma oração silenciosa, pedindo proteção à brava gente brasileira.
Que Deus ilumine nossos governantes, sejam eles quem forem! E que nos livre do mal!