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sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Papai Noel Não Morreu

Deve ter sido o ano 2000 ou 2001. Certamente final do ano, novembro ou início de dezembro, pois o Natal se aproximava, mas o ano letivo ainda não terminara. Escolas, edifícios residenciais, shopping centers e monumentos cobertos de luzezinhas coloridas; renas, trenós, árvores e bolas natalinas por todos os cantos; brinquedos maravilhosos apresentados nas telas de tevê, prontos para serem recolhidos pelo bom velhinho e entregues às crianças comportadas e obedientes na noite mais esperada do calendário anual.
Os adultos podem não se encantar com as imagens de Papai Noel que se proliferam pela cidade nessa época (embora a muitos inconfessos sua figura traga uma terna nostalgia), mas não há criança que se mantenha imune à onipresença do velho barbudo de roupas vermelhas e brancas. E não importa se a estatura do velhinho é variável, se está ora acima do peso, ora um tanto desnutrido, se por vezes usa óculos e por outras, enxerga com nitidez. Papai Noel é único e insubstituível, ainda que sua imagem se multiplique e sua aparência sofra constantes mutações.
Onisciente, ele tem pleno conhecimento do que as crianças pensam e de como agem. E por isso sabe quem merece ou não ter os seus pedidos atendidos na noite de Natal. Com sua onipresença e onisciência, Papai Noel é um pedacinho de Deus, que se personifica no mês de dezembro (E de uns anos pra cá, a partir de novembro – quiçá outubro, passado o dia das crianças). Um outro detalhe a respeito desta ilustre figura é que entra ano, sai ano e Papai Noel não envelhece (mais) e, é claro, não morre! Imaginem que lástima milhares de crianças desamparadas na noite de Natal se Papai Noel morresse. Comoção infinda para crianças, adultos nostálgicos e comerciantes de várias partes do mundo. Que triste pensar na morte do Papai Noel.
Pois foi essa tristeza que inundou Mayara, minha filha, por volta dos seus seis anos de idade. Tudo começou com as costumeiras luzezinhas, as decorações de Natal e todo o clima ao mesmo tempo efusivo e reflexivo que permeia o final do ano. Sensível e esperta, Mayara sempre foi. Envolvida pela atmosfera natalina, sua sensibilidade costumava presentear a nós, familiares, com interpretações teatrais na noite de Natal, como a borboleta pequenina e feiticeira que vinha trazida do rosal nos seus gestos esfuziantes e em sua voz alta, escondendo Marisa Monte, que ecoava ao longe através das caixas do CD player. Nas semanas anteriores ao Natal a que me refiro neste texto, a sensibilidade e esperteza de Mayara me presentearam de uma forma completamente inesperada. Suas reflexões e indagações sobre o velho Noel me revelaram muita clareza e coerência no seu raciocínio tão jovem – sem dúvida um grande presente para esta mãe orgulhosa. Entretanto, o inesperado me surpreendeu de tal modo que eu não soube lidar com o improviso. E o meu despreparo causou em minha filha uma grande tristeza.
A conversa se passou à noite em seu quarto:
_ Mãe, posso perguntar uma coisa?
_Claro, filha. O que é? - Respondi de pronto, sempre disposta a incentivar indagações, curiosidades e diálogo familiar.
_Papai Noel sabe tudo que a gente faz, né?
_ É. - Respondi sem hesitação e sem maiores expectativas de extensão da conversa.
_ Ele vê todo mundo, mesmo sem que a gente veja ele, né?
_É ... – Respondi, agora com alguma hesitação, querendo não entrar em detalhes, mas querendo também não traçar um caminho de inverdades.
Eis que o inesperado começou a anunciar-se:
_Se Papai Noel vê todo mundo, mas ninguém vê ele, se ele sabe o que todo mundo faz, mas ninguém sabe onde ele está, ele é um espírito?
Constatei naquele instante o quanto as crianças são perspicazes. Com certeza Mayara absorvia muito mais as conversas sobre espiritismo que seu padrinho trazia aos adultos do que poderíamos supor. Com ainda mais hesitação, e certo temor do que poderia estar por vir, respondi:
_ Hum ... é ...
A expressão de Mayara começou a modificar-se. Com a testa franzida, os olhinhos apertados e os lábios semi-trêmulos, deu continuidade ao seu pensamento lógico:
_Se Papai Noel é um espírito ... (pausa para a conclusão derradeira) ... ele morreu?
Golpe mortal, em mim e no Papai Noel. Atingida em cheio pela sensibilidade da minha filha, foi-se embora com Papai Noel a minha habilidade materna:
_Ééé... ele morreu.
O mundo veio abaixo. Choro, desespero, desesperança, dor.
_Papai Noel morreu! Papai Noel morreu! - Soluçava Mayara.
Diante da morte do Papai Noel e do desespero da minha filha, eu menos ainda sabia o que fazer ou como agir. Tentei desdizer:
_Não, não é bem assim. É que ele sabe tudo, vê tudo, ele é um espírito, mas ... Eu me enrolava e Mayara não queria mais ouvir. Choramingos daqui, soluços de lá, e logo era hora de dormir.
No dia seguinte, nada se falou sobre o assunto. O silêncio pareceu ser a melhor expressão de luto, da Mayara e meu. Ao deixá-la na porta da sala de aula, como de costume, chamei a professora num canto do corredor e, envergonhada, confessei tudo o que acontecera na véspera. Pedi que ela observasse o comportamento da Mayara e sua reação diante de uma notícia tão brutal.
Passei o dia aflita, na expectativa de como Mayara iria comportar-se e na repercussão que o fato poderia ter para as outras crianças, por toda a escola, nas suas casas, suas famílias. Meu Deus, eu tinha matado o Papai Noel!
No final da tarde fui à escola buscar Mayara. Ansiosa, cheguei à porta da salinha e tia Cris veio me receber.
_ Como foi? Como ela se comportou? – Perguntei apreensiva.
Com a alegria dos vinte e poucos anos, tia Cris disse que Mayara reportou tudo a ela no inicio da aula, mas disse não acreditar no eu lhe contara. E perguntou a ela, tia Cris, se era verdade o que eu havia dito. Ufa! Um enorme peso era liberado da minha consciência naquele momento. Senti-me extremamente aliviada, por mim, por Mayara e todas as crianças. Papai Noel não morreu!
Passada a minha sensação de alívio veio a pergunta: Mas, afinal, o que disse a tia Cris? Que eu não tinha falado a verdade? Que eu tinha criado uma mentira? Uma nova preocupação se aproximava de mim. Eu não queria matar Papai Noel, mas não queria ser uma mãe mentirosa. Tia Cris me explicou, então, como Mayara se convenceu:
_ Mayara, o que nós precisamos respirar para viver?
_O ar, tia!
_E o ar existe?
_Claro, né, tia! Que pergunta!
_Mas você vê o ar?
_Não, né tia!
_E você sente o ar? Sente o vento? Sente o ar frio? O ar quente?
_Sinto!!!
_Você sente, mas não vê. Pois então, Mayara, assim é o Papai Noel. Nós não o vemos todo o tempo, mas podemos senti-lo sempre, sentindo sua bondade. E sabemos que ele existe.
Santa tia Cris! Com certeza o espírito natalino a inspirou para que sua resposta fosse a que foi: singela aos olhos de uma criança, profunda para quem já viveu um pouco mais, e de um modo ou de outro, simplesmente verdadeira.
Daquele dia em diante, não comentamos mais sobre o assunto. Mayara continuou a falar sobre Papai Noel com os mesmos sonhos, fantasias e entusiasmo de antes. E acenava para o velhinho, vivinho, nos shoppings e ruas, aguardando a retribuição do aceno.
Fui sempre muito agradecida à tia Cris, que com seus vinte e poucos anos, sua alegria e descontração, salvou Papai Noel da morte, evitou traumas infantis e maternos, e sabiamente nos lembrou que “há mais entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia”. De fato nem sempre é preciso ver para se reconhecer a existência. Basta sentir. E na sutileza dessa sensação, entregar-se ao que se crê ser verdadeiro, sem reservas.
Que no Natal que se aproxima, nós todos possamos crer na existência do Papai Noel como símbolo das mais belas emoções. E que o seu presente maior para cada um seja acreditar no que se imagina verdadeiro para si, especialmente, o seu próprio ser. Que Papai Noel traga a cada um de nós a crença em si mesmo. Feliz Natal!

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Isto e Aquilo

“Não sei se brinco, não sei se estudo, se saio correndo ou fico tranquilo.” Foi este padrão excludente que adotei na vida desde quando minha memória me permite lembrar. Quando criança, brincar ou estudar eram alternativas que se apresentavam à tarde, após a chegada da escola e a pausa do almoço. Eu poderia brincar e depois estudar. Ou estudar antes de brincar. Aluna aplicada como sempre fui, entretanto, a dúvida logo desaparecia e estudar geralmente se impunha, excluindo a possibilidade de brincar, qualquer que fosse a ordem entre ambas alternativas. Quanto a correr ou ficar tranquila, a segunda opção era sempre a escolhida. Verdade criada por mim mesma, filha exemplar deveria expressar tranquilidade. Caso contrário, ela poderia não ser tão querida. Portanto, a escolha estava feita.
A ótica dualista que adquiri na infância - não me pergunte o porquê – permeou toda a minha adolescência: “Quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares.” E eu geralmente optava por ficar no chão. Movida pela dedicação aos estudos e muita disciplina, foi com os pés no chão que eu passei grande parte dos meus teen ages debruçada sobre a escrivaninha do meu quarto, lendo e estudando enquanto a maioria dos amigos saía para se divertir. Foi com os mesmo pés no chão que fui aprovada no vestibular de Medicina da Universidade Federal Fluminense aos dezesseis anos e decidi abandonar o curso médico pela faculdade de Letras dois anos depois, ainda que sob certo protesto da família. Subir nos ares acontecia sim, embora muito tímida e particularmente. Como boa pisciana, eu não deixei de sonhar.
Atingi a fase adulta. Aos vinte e um anos, inaugurei minha vida profissional, e aos vinte e quatro, casei-me. Desconstruindo os meus próprios paradigmas, consegui conviver bem com a dualidade‘esposa e profissional’ durante todo o meu casamento. Na verdade, a flexibilidade de horário que as aulas de inglês me ofereciam permitia que eu desempenhasse minhas duas funções perfeitamente, sem prejuízo ou a exclusão de uma ou outra.
Passados três anos, iniciei a mais bela etapa de vida que a natureza possibilita a uma mulher: ser mãe. Seduzida pelo encantamento típico dos bebês e inexperiente na função materna, passei a dedicar-me integralmente à minha filha. Nos seus primeiros anos de vida, eu não admitia alternativa aos cuidados e à atenção que dispensava a ela, bem maiores que à minha própria vida particular. E não lamentava que não pudesse estar ao mesmo tempo em dois lugares, pois era com ela que eu queria estar todo o tempo.
Mas o tempo passou, minha filha cresceu e cresci eu em experiência de vida. Hoje entendo que uma escolha não precisa excluir a outra. Peço licença à mestra Cecília Meireles e discordo que “ou se tem chuva e não se tem sol, ou se tem sol e não se tem chuva”. Sol e chuva se combinam num magnífico céu de cores formadas pelos fenômenos de reflexão e refração. São os dois juntos que realizam a mágica do arco-íris para o nosso contemplar.
Hoje olho para trás e penso com muita placidez nas escolhas que não fiz. Brinquei, corri, subi nos ares e cuidei de mim menos do que poderia ter feito, é verdade. Porém, fiz o que pude fazer de melhor em cada momento. Para entender que eu poderia ter feito diferente, precisei crescer e enxergar a vida sob uma nova ótica. Só o passar dos anos me permitiu adquirir essa nova visão. Hoje vejo que é possível brincar e estudar, correr e ficar tranquila, subir nos ares e ficar no chão, dedicar-se aos filhos e a si própria. É tudo uma questão de equilíbrio. Para quem não entendeu ainda qual é melhor: se é isto ou aquilo, pode ter certeza da escolha. Melhor é isto e aquilo.