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quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Femme Fatale


Décimo-quarto dia de viagem à Europa. A estada de uma semana na Inglaterra para uma conferência de trabalho possibilitou-me uma pequena extensão a países próximos. A Europa é mesmo assim: Vai-se de um país a outro em um rápido turbinar sob asas ou em um expresso deslizar sobre trilhos. Fez-se então a oportunidade de, partindo de Liverpool, traçar o roteiro de passeio a Paris e Amsterdam.
A propósito dos temas expostos na conferência, dos lugares visitados, das pessoas que encontrei e dos sabores que experimentei, foram muitos os pensamentos e as sensações que me invadiram. E são justamente essas as minhas maiores alegrias ao viajar: abrir os olhos, despertar os ouvidos, apurar o olfato, aprimorar o paladar, experimentar diferentes sensações corpóreas. Enfim, expandir conhecimento e consciência através de experiências sensoriais, seja diante de situações inéditas ou situações conhecidas que adquirem então uma nova percepção.
São diversos os assuntos que eu gostaria de desenvolver e compartilhar. São variados os temas sobre os quais quero escrever. Em diferentes experiências que venho vivenciando ao longo desses dias, furacões de pensamentos se aproximam, lampejos de ideias reluzem com intensidade e esmaecem de súbito. É grande o anseio de registrar o que tantas situações me fazem sentir, mas isso nem sempre é possível de imediato. E a ventania se acalma, as luzes se apagam, os pensamentos adormecem. Embora aquietado, o desejo de escrever continua vivo, aguardando o momento de despertar.
E neste exato instante, quando os relógios de Amsterdam marcam 21 horas do dia 20 de abril de 2013, sob o céu ainda dourado de sol, assalta-me a oportunidade ansiada. Na banheira deste confortável hotel no 'Museum District' da capital holandesa, relaxando após um dia de muita caminhada, penso no início do filme 'Femme Fatale'.
O calor da água morna, os ladrilhos azulados da parede e um relógio na borda da banheira me fazem imaginar ser Laure Ash, a sensual protagonista de Brian De Palma, mergulhada em lembranças. As imagens que construo, entretanto, não me trazem angústia, como à sedutora personagem, mas enorme contentamento.
O que lembro é um belo rosto desconhecido de mulher, que avistei no aeroporto de Paris há oito dias. Voltam-me os pensamentos e o que desejei ter podido escrever ali. Na quietude deste momento, encontro as condições ideais para que pensamentos e emoções transformem-se em palavras escritas.
Combinamos um encontro no Charles de Gaule, eu e o meu amor, onde iniciaríamos nosso pequeno recesso europeu - eu vinda de Liverpool e ele vindo do Rio de Janeiro. Meu voo foi o primeiro a chegar, conforme previsto. Aguardando por ele, distraí-me acompanhando franceses e estrangeiros atravessarem o portāo de desembarque. Noite fria e chuvosa; pessoas com os corpos cobertos por calças compridas, casacões, gorros e cachecóis em cores escuras. Pessoas comuns.
Meus olhos foram então capturados por um rosto singular, traje incomum, linguagem corporal particular. Uma mulher pouco ordinária naquela multidão. Com cabelos compridos e ondulados cor de mel, pele bronzeada, altura mediana e corpo esguio, ela naturalmente se destacaria, pois era muito bonita. Mas não foi simplesmente a sua beleza que me chamou atenção. Sua feminilidade era esfuziante. E esse era o rastro que ela deixava ao caminhar. Maquiagem discretamente notável, pernas torneadas protegidas contra o frio em meia-calça grossa, saia elegantemente curta, sobretudo cobrindo uma blusa de tecido leve que revelava ligeiramente seu colo por baixo do decote em V. Botas longas de salto alto. Postura ereta. Caminhar confiante e imensamente feminino.
Acompanhei a mulher com os olhos pelos poucos segundos em que ela passou por mim, mas mantive sua imagem em meu pensamento por um bom tempo. Imaginei que ela fosse uma mulher independente e profissional bem-sucedida. Passei meu tempo de espera construindo a protagonista da minha história e procurando explicação para tamanho impacto que a mulher me causara. Por fim, não foi difícil entender: aquela mulher gritou a voz que em mim necessita de liberdade. Voz outrora rouca e agora fortalecida, a minha voz-mulher. A bela fêmea que assisti atravessar o saguão do aeroporto tornou-se a heroína da minha imaginação e o espelho dos meus pensamentos. Ela expôs ousadamente que confiança, segurança e sucesso profissional não anulam a feminilidade que toda mulher deve permitir-se ter.
Perfume, maquiagem, cores, adereços não são símbolos de fragilidade. Sensualidade não é frivolidade. Vaidade não invalida respeito. E é importante sim, que toda mulher, quer seja em Liverpool, Paris, Amsterdam, Rio de Janeiro ou qualquer parte do mundo, exercite sempre a sua feminilidade. Que as mães ensinem às filhas a arte de desenvolver os sentidos femininos: o olhar sensível, o gosto suave, o toque delicado, o cheiro doce, o som da alma. E que toda mulher do planeta sinta orgulho em ser feminina.
Aliviada por organizar meus pensamentos em palavras, trago minha mente de volta ao momento presente. Olho para o relógio e constato que é hora de me arrumar para o jantar. Já é noite no céu. Envolvo-me no roupão de banho e procuro o que vestir. Retiro da mala as botas de cano alto, a meia-calça, o sobretudo e um vestido. Separo meu Kenzo Flower e escolho cuidadosamente as cores da sombra e do batom. Decido usar brincos mais chamativos esta noite.
Daqui a pouco estaremos no restaurante In De Waag, em Nieuwmarkt. Vou degustar os sabores da Holanda e deixar as minhas marcas de batom no copo de vinho.