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domingo, 29 de setembro de 2013

Meu Bem


Foi a milhas de distância do Rio de Janeiro que tomei conhecimento de Beatriz Milhazes, seu nome e sua obra. Em uma exposição no Museu de Arte Latinoamericano de Buenos Aires em 2012, as cores vivas dessa grande artista plástica exaltaram em terras portenhas meu orgulho de ser carioca, conterrânea de Beatriz. A intensidade, a alegria e o dinamismo de suas telas refletem o estado de espírito que nós, cidadãos tropicais, conhecemos tão bem. Não há como sentir-se indiferente aos círculos, listras e estrias vibrantes que parecem saltar das telas em direção aos nossos olhos, hipnotizando nossa mente.
A rendição ao mundo de cores de Beatriz nas salas do MALBA transportou-me no tempo e espaço. Por instantes, voltei à década de 70 e avistei, no centro do Rio de Janeiro, a sala do pequeno apartamento da minha avó. Ali estava eu, pernas e shorts curtos, rabiscando com gizes coloridos um quadro negro de brinquedo. Havia também muitos lápis de cor espalhados sobre o mármore branco da mesinha de centro. E ainda tinta-nanquim cobrindo por inteiro uma folha de papel úmida, que ao secar seria cuidadosamente riscada com alfinete para revelar traços do colorido escondido por baixo da tinha. Nas tardes daquele tempo, enquanto minha mãe trabalhava fora, era na casa da avó que a criança nada arteira e um tanto artística soltava a sua imaginação e libertava em cores o seu mundo secreto. Incrível como poucos minutos diante de uma tela me fizeram a memória regressar tantos anos. Mas é justamente esse o poder da arte: tocar a atemporalidade da alma e nos fazer viajar sem sair do lugar.

 No dia 8 de setembro de 2013, minha alma novamente inquietou-se com a obra de Beatriz, dessa vez em nossa terra natal.  Não poderia haver melhor escolha de lugar para abrigar Meu Bem, uma mostra artística de tamanha vibração, que uma construção cheia de simbolismos de liberdade. Centro das movimentações históricas da abolição da escravatura e proclamação da república do Brasil, o Paço Imperial veio alojar a moderna movimentação de cores que alforriam a mente das formas estáticas e previsíveis.
Logo no início da exposição surge o impacto de um gigantesco móbile com flores, miçangas, espelhos, brilho, transparência e cor. De imediato, invade minha mente a imagem coletiva do carnaval carioca e seus carros alegóricos. Não imediatamente, assaltam-me os sentidos lembranças particulares dos meus carnavais passados. Eu, que tinha o sonho adolescente de desfilar em uma grande escola de samba, não poderia imaginar meu desejo tornando-se real por tantos carnavais. Durante os quinze minutos em que apreciei a peça, revivi meus quinze anos de desfile na Marquês de Sapucaí. Meu corpo e espírito fundiram-se em alegria no Paço Imperial, minha alma sorrindo diante de cada enfeite pendente que lembrava os adereços e alas do querido Salgueiro na avenida.

Feliz começo de exposição, boas lembranças, belas fantasias. E assim seguiu meu passeio de domingo pelas salas do velho edifício colonial. Próxima descoberta: imagens coloridas em recortes de papel. Deparei-me então com o trabalho de colagem, que não tivera a oportunidade de conhecer na Argentina. Maior proximidade das obras revelou-me uma surpresa: as imagens eram bem familiares. Um olhar mais cuidadoso evidenciou o inesperado: papéis de bala e embalagens de bombons, sobrepostos, ora levemente escondidos, ora claramente expostos.
E brilhou naquele momento o olhar da minha criança curiosa, gulosa, encantada, buscando no bolso do paletó do pai os chocolates que ele trazia na volta do trabalho. Os papéis de bombom eram doces pedacinhos de lembranças que se desembrulhavam em minha mente. Eis a arte brincando com o tempo.

A brincadeira seguiu pelas colagens de recortes de sacolas de lojas. Ali minha menina se fez mulher, seduzida pelo mundo da moda e da beleza. Nomes de lojas internacionais me levaram a locais que conheci e a outros que ainda visitarei. Novamente a arte a serviço do atemporal; presente, passado e futuro fundidos no mesmo instante.
Saí da exposição levando o seu colorido em meus olhos e suas formas em minha mente, como um caleidoscópio de arabescos. Senti-me leve, alegre, pulsante. Através das pinturas, gravuras e colagens passeei por minha meninice, adolescência e maturidade, ziguezagueando através do tempo. A viagem lúdica pelo mundo de Beatriz levou-me ao encontro do meu maior bem: a minha história. Coisas que a arte bem sabe fazer!