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quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Buenos Aires: O Melhor da Festa

Dizem que o melhor da festa é esperar por ela. E que o planejamento de uma viagem faz parte do prazer de viajar. Ou seja, as boas expectativas de um acontecimento nos despertam sensações antecipadas de gozo e euforia. Talvez seja isso um mecanismo inconsciente de defesa contra a frustração que se instala quando nem tudo acontece conforme o previsto. Se as felizes expectativas de uma festa ou viagem não se cumprirem, a simples espera pela chegada do evento já terá feito o acontecimento valer a pena.
 Mas, e quando não há expectativas? E quando os mecanismos de defesa não são precocemente acionados? Bem, aí estão as verdadeiras oportunidades de usufruir por inteiro das delícias da festa e do sabor da viagem. Sem pre-ocupações ou pre-julgamentos, mente e corpo se ocupam do momento presente, e nos permitem julgar o que realmente é, e não o que supomos ser. Assim foi a minha visita a Buenos Aires: sem expectativas, sem pre-ocupações, sem pre-julgamentos. E exatamente por isso tão maravilhosa.
 Embora próxima do Rio de Janeiro, a cidade portenha sempre foi distante dos meus anseios. Não considerava a ida a Buenos Aires uma viagem ao exterior, já que não se tratava de Estados Unidos ou Europa. Tampouco era uma viagem nacional, obviamente. Então Buenos Aires simplesmente não era. Declaração envergonhada e pensamento tupiniquim, confesso. Mas a verdade é que meus olhos sempre se voltaram para a América do Norte e para o Velho Continente - até outubro deste ano.
 Foi Calí quem deu a sugestão. Em agosto, ele veio com a ideia de irmos a Buenos Aires dali a dois meses, quando teríamos alguns dias de férias. Aceitei o palpite. E os preparativos foram meramente comprar passagens e reservar o hotel - o mínimo a ser feito. É bem verdade que busquei algumas informações e recebi dicas de amigos que já conheciam a cidade, mas em momento algum senti o friozinho na barriga típico da ansiedade pre-viagem-tão-esperada. Estava feliz com a escolha, mas sem expectativas. E disso decorreu o melhor da festa: a viagem em si.
 Após a chegada ao aeroporto de Ezeiza, quando a caminho do nosso hotel em Recoleta, passamos pelo centro da cidade. E naquele momento tive o primeiro impacto, ao percorrer a Avenida 9 de Julio. Uma avenida com tamanha amplitude não poderia pertencer a qualquer cidade. São doze pistas em cento e quarenta metros de largura e muitos quilômetros de extensão. E verde, muito verde entremeando o cinza dos quarteirões. 'Verde que te quiero verde', aliás, caberia bem como slogan da cidade. As numerosas praças são arborizadas, agradáveis e reúnem muita gente exposta aos bons ares à procura de bem-estar físico e espiritual, em suas roupas de ginástica ou com livros em punho. Reúnem-se também muitos cães, em bandos, cujas coleiras convergem para as mãos de um único passeador.
 O que falar da arquitetura? Eu sabia que a influência parisiense era bastante presente. Só não poderia supor que por tantas vezes olharia uma esquina e imaginaria estar na Boulevard Saint-Michel, com seus telhadinhos peculiares. Não poderia imaginar a riqueza arquitetônica do Teatro Colón ou o esplendor da livraria El Ateneo.
 E quanto à gastronomia? Quem bem me conhece sabe que não sou grande apreciadora de carne vermelha. Mas como resistir ao 'ojo de bife', principalmente quando acompanhado de um Altos Las Hormigas Malbec e precedido por um covert de 'tomates desecados, morrones braseados, muzzarela, mantequilla y variedad de panes caseros'? Somado ao apuro do paladar, o requinte da vista para águas vindas do Rio da Prata e o aroma amadeirado de ervas no ar. Ambientação perfeita para um brinde aos sete anos de namoro que celebramos no início do mês.
 A riqueza cultural da cidade também me impressionou. Com tantos museus à disposição, foi preciso optar. E a escolha se deu por uma questão nacionalista: apreciar de perto a mais valorizada tela brasileira no mundo, referência à antropofagia modernista em deglutir a cultura estrangeira: Abaporu. Foi emocionante ver o mais importante quadro de Tarsila ao vivo! Motivo suficientemente justo para a opção pelo MALBA, ainda que outros artistas expostos no Museu de Arte Latinoamericano mereçam o nosso respeito. Encantei-me com o realismo das telas de Antonio Berni, por exemplo!
 Como falar da cultura argentina sem mencionar esse que é considerado patrimônio cultural da humanidade? Lindo, poético, dramático, o tango nos emocionou na apresentação do quinteto que ouvimos acompanhar cantores e dançarinos no Café de Los Angelitos. Gardel, Piazzola e outros menos conhecidos por nós aqueceram nossas almas de emoção naquela noite.
 Foi essa então a minha experiência em Buenos Aires. Sem expectativas, sem a ansiedade da espera, sem a antecipação de sensações, a cidade chegou de mansinho e se apropriou de mim. Tornou-se um destino precioso que me possibilitou viver com intensidade cada momento. Un gran regalo. A comprovação de que o melhor da festa deve ser sempre a festa em si. Hasta la vista, mi Buenos Aires querido!

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Doses de Felicidade

Em sua página na Revista O Globo de domingo passado, Martha Medeiros publicou o texto ‘Pequenas Felicidades’, uma lista pessoal de cinquenta itens que a deixam feliz.
Parei para pensar e constatei: é isso mesmo. Se não existe estado permanente de felicidade neste planeta que habitamos, é preciso aceitar a ideia de que a felicidade se apresenta em pequenas doses, como gotas de homeopatia. E tal qual a medicina de Hahnemann, é necessário que se faça uma anamnese cuidadosa para identificar que gotas são as mais indicadas para curar cada paciente dos males de infelicidade, insensibilidade e apatia. Que médico consultar? O mais preparado de todos os curadores, é claro: o seu próprio ser. Somente cada um de nós pode identificar que situações nos trazem pequenas felicidades.
O problema é que, como esperamos encontrar felicidade única e permanente, muitas vezes sequer percebemos o quanto pequenas doses de felicidade podem nos trazer tão intensa qualidade desse estado. Mas vale a pena fazer uma consulta com o seu próprio ‘eu’ para entender que todos nós somos felizes sim; o que precisamos é simplesmente aprender a lidar com a efemeridade desse sentimento.
Consultei a mim mesma, focando na minha rotina, do momento de acordar ao de deitar. Pensei nos meus dias, semanas, meses. Pensei na minha vida. Perguntei-me em que situações me sinto feliz e identifiquei alguns momentos de imediato. Outros me vieram à mente após certo esforço em racionalizar os pensamentos. Como conclusão, pude entender que minhas doses de felicidade estão sempre comigo, no vidrinho de homeopatia que carrego no bolso da alma. Entretanto, nem sempre eu me lembre de tomar as gotículas. Algumas vezes me esqueço por completo de sua existência, outras vezes lembro somente quando passou a hora do remédio. Nestes casos, a sensação de “eu-era-feliz-e-não-sabia” aperta o coração.
Minha consulta valeu! Foi uma experiência interessante alternar o olhar sobre mim mesma, sentindo minha voz ecoar ora fora ora dentro de mim: Quando você se sente feliz, Ana Paula? Pense no momento de despertar pela manhã. Lembre a sensação de espreguiçar o corpo. Você adora, né? E as situações do dia-a-dia? Lembra quando você se sensibilizou com o senhor vendedor de biscoitos no sinal e sua dificuldade de caminhar? Lembra como você ficou feliz ao comprar seus biscoitos e receber um sorriso? O que mais te faz feliz, Ana Paula?
Durante essa experiência, surpreendi-me com as inúmeras doses de felicidade que pude identificar ao longo da minha vida. E descobri a palavra-chave para a tomada de consciência dos meus momentos felizes: atenção. É a vigília constante que vai me permitir enxergar todas as situações de felicidade ao meu redor e me possibilitar sorver cada dose no momento exato, na hora ‘agá’. A mente aberta – e alerta - me fará compreender a felicidade como ela é: frequente, embora impermanente.
Diante da minha compreensão expandida, prescrevo a mim mesma as seguintes gotinhas: curtir as histórias da May, receber as lambidas da Teca, bater papo com minha mãe, conversar ao telefone com meu pai, reconhecer identificações com a Cris, ouvir o ‘boa-noite’ do Calí. E também cantar - no banheiro, na sala, no quarto, na cozinha, no carro. Também escrever – impetuosamente no trânsito ou pensadamente no quarto. Também fazer yoga, sentindo a branda dor de cada músculo alongado. Também caminhar, deixando o céu azul inspirar orações. Também traçar o roteiro da viagem a Buenos Aires. E planejar a viagem seguinte. E saborear caipivodka de abacaxi. E devorar o vidro de azeitonas. E apreciar a lua cheia de madrugada. E lembrar o sonho que tive com vô Rezende recentemente. E sentir meu corpo desmilinguir-se ao final da taça de vinho.
 Eis então algumas das minhas doses de felicidade. Como num tratamento homeopático, as absorvo pouco a pouco. E, gota a gota, vou estimulando minha energia vital e alcançando qualidade de vida a despeito da quantidade que eu viva.
E você? Já parou para pensar quais são as suas doses de felicidade para viver bem?

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Desabafo

Ler ou escrever? Eis a questão. Dormir não deveria ser, mas é sim a última opção. Amanhã é dia de acordar cedo, dia de trabalho intenso, e onze horas da noite não parece ser horário para nada além de ir para a cama. Entretanto, o livro de um lado e o laptop do outro me trazem a dúvida: Continuar a trajetória espiritual de Liz em ‘Comer, Rezar e Amar’ ou digitar parte da minha própria jornada de vida? O egocentrismo venceu e aqui estou eu, computador no colo, a escrever.
Egocêntrica? Há quem pense que sim. Mas quem não o é, ao menos em algum momento da vida? Quero buscar os meus interesses, a minha satisfação, o meu prazer. Reconhecer o que gosto e descartar o que não gosto, sem culpa. Aceitar que esta pisciana é sensível, doce, sutil, delicada. E isso não é fraqueza. Simplesmente característica. Quero sim me conhecer mais e mais. Atingir a minha profundidade para poder então convidar quem mereça a mergulhar em mim junto comigo.
Quero fazer deste peixe pequeno que nada na imensidão do oceano um tubarão que sabe o que caçar quando tem fome. Quero romper o peito, desatar os nós e me livrar das armaduras criadas desde o berço para caminhar em liberdade enquanto houver vida.  Quero perder o medo de cair para poder subir cada vez mais alto. Quero jogar fora os velhos padrões e encher minha casa de comportamentos novos, ousados, destemidos.
Último grau do signo solar, último grau do signo ascendente, e a astróloga me diz que esse é um momento de virada na minha existência. Encarnação com saltos em evolução, diz ela. Acredito no zodíaco e faço as minhas preces à Lua. Que eu possa crescer a minha alma, crescer a minha matéria e obter leveza de espírito. Leveza em pensamentos, em palavras e atitudes. Porém intensidade em viver. Paixão pelos dias, pelas tardes e noites. Dançar, cantar, criar. Inspirar sofisticação e expirar beleza. Permitir – a mim e aos outros. Degustar com vagar e deglutir em pequenas porções. Sentir o aroma de cada lugar, cada situação e cada ser. Ouvir as gotas que pingam da pia enquanto os pássaros piam às seis da manhã. Tocar as diferentes texturas da natureza. Olhar o céu e ver a limpidez do azul de inverno.
Quero enxergar a minha grandeza e o brilho que trago em mim. Quero encontrar as minhas verdades sem as falsas modéstias dos indivíduos pequenos. Quero escrever, transbordar.
E ser grata, sempre. A Deus, ao universo, à vida, às pessoas que me rodeiam. Nesse momento, expresso aqui minha gratidão a mim mesma. Agradeço por ter deixado de lado o livro que pensei ler e ter optado por escrever. Eu pude,assim, desabafar.
Meia-noite e meia agora. Desligo o laptop e vou dormir tranquila.  Boa noite.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Conexão San Diego

Viajar traz sempre oportunidades de expansão e crescimento. Basta ter a mente aberta para que o corpo e a alma preencham suas malas com experiências memoráveis: impressões e sensações que podem permanecer por toda a existência. De tudo que se experimenta, quer seja bom ou ruim, ficam reflexões que geram conhecimento, de si próprio e do ser alheio.

San Diego, junho de 2012. O objetivo da viagem foi a participação na trigésima terceira conferência da Sociedade Internacional de Tecnologia em Educação (ISTE). Sem dúvida, importantes ganhos profissionais. Com muito orgulho, novos acréscimos pessoais.

Interação virtual em todos os cantos durante os dias da conferência. Laptops, tablets e celulares acionados dentro e fora das salas, mantendo a comunicação dos participantes entre si e com os conferencistas, como:
. Endereço para download da apresentação e acompanhamento da sessão no seu próprio aparelho: baixado o conteúdo, cada participante pode fazer suas próprias anotações referentes a cada slide.
. Exemplos das últimas tendências em sala de aula: Ipads e flipped classroom, onde o processo interativo virtual otimiza o tempo de contato real com o professor.
. Levantamento de informações em tempo real: "Quem dos participantes conhece a mídia tal? E qual a sua opinião sobre isso? Tecle XYZ no celular e dê o seu depoimento." Na grande tela surgem os textos: "Excelente rede de socialização entre os alunos.", John, de San Francisco, há 3 minutos; "Não sei do que se trata, estou aqui para conhecer a ferramenta.", Greg, de Toronto, há 2 minutos.

Na plateia, tablets enlouquecidos registram anotações, celulares fotografam os slides e, paralelamente, um ou outro aparelho envia mensagens para alguém distante dali. Facebook aberto ou instagram acionado fazem conversas acontecerem silenciosamente durante as palestras. Será isso evidência da capacidade multitask de gerenciar diferentes tarefas ao mesmo tempo? Ou será a materialização do pensamento distante num corpo próximo? Algumas incertezas diante da certeza única:estamos atravessando uma grande revolução. Definitivamente.

E esta viagem me apresenta tal certeza de maneira muito clara. Minha certeza é não simplesmente de que o livro digital é a evolução do livro impresso. Minha certeza vai além da interação didática ensino-aprendizado. Ela se expande para ensino-aprendizado de vida. Percebo que o avanço tecnológico não afasta as pessoas, como muitos teorizam. Ao contrário, a tecnologia possibilita uma grande aproximação entre aqueles que antes se encontravam tão distantes. Senti isto muito nitidamente nas noites em que, sozinha no meu quarto do hotel, me comuniquei via internet com os meus queridos no Brasil. O vazio da distância foi preenchido como se eles todos estivessem no quarto ao lado.

A revolução tecnológica faz surgir um novo padrão de interação entre as pessoas. É bem verdade que o corpo nunca foi capaz de aprisionar a mente. Mas agora, diante dos recursos tecnológicos, a mente passa a ter o equipamento físico, a máquina, para realmente voar. Se meu corpo está numa conferência em San Diego, mas minha mente está na minha filha no Rio de Janeiro, teclo (ou toco) para saber como ela está. E, diante da resposta, minha mente retorna ao local onde o corpo ficou e, novamente, corpo e mente se integram no mesmo lugar.

É claro que o novo vem carregado de modernidade e progresso. Entretanto, não podemos subestimar o lado bom do velho, onde o contato físico impera. O maior risco neste novo padrão de relação interpessoal é a perda do valor das pequenas grandes coisas. Sabe aquele velho ditado de que a felicidade mora ao lado e só quem é tolo não consegue ver? Pois bem, meu receio é que passemos a cometer a tolice de ignorar que bem ali, literalmente ao lado, tem tanta coisa boa. Receio que o olhar adiante possa cegar o olhar minucioso das peculiaridades que só a proximidade permite enxergar. Que as consultas e conversas virtuais nos façam perder o ponto 'x' da palestra no congresso ou o sentido da piada na mesa de bar.

Enfim, tudo é alimento para o pensamento, ou food for thought, como se diz em inglês. Insights e questionamentos que me ocorreram nesta viagem a San Diego, onde, mais do que em qualquer outra viagem, senti os efeitos de estar conectada em grane escala. Conexão pessoal por interface física e conexão virtual por interface tecnológica.

Que gratificante é a possibilidade fazer conviver o melhor do velho e do novo dentro de mim neste momento! O contato real instigando o pensamento e o contato virtual possibilitando o compartilhamento das minhas reflexões com você, leitor. Sem dúvida, o avanço tecnológico faz parte da evolução coletiva do mundo. Que cada um de nós saiba viver este período revolucionário da melhor forma possível, fazendo uso de cada ferramenta tecnológica como instrumento para a própria evolução individual.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Pequena Oração

Segunda-feira, 23 de abril de 2012. Feriado de São Jorge no estado do Rio de Janeiro. Em casa, à noite, depois de um dia preguiçoso de temperatura amena e almoço tranquilo, a checagem de mensagens na rede social traz a maior pausa do dia: “A Terra está mais triste hoje. Perdemos o amigo Jorge Pineiro.” Por um instante a respiração se interrompe, os movimentos cessam e o olhar paralisa. A seguir, o sobressalto, o pulo da cama e a procura do celular. Um telefonema confirma e esclarece a notícia: dengue hemorrágica, fatal. O mal-estar interno se agiganta. Diante da indesejável, da iniludível, um nó na garganta. E o acúmulo de porquês. Pausa. Refletir sobre a vida agora é inevitável. Seu sentido ou total falta de razão. Como num rolo de filme, vários rostos queridos passam, um a um, em minha mente. E os pensamentos fervilham. Olhar para o lado e imaginar não mais ver quem está ali. Pensar no familiar distante e supor nunca mais ouvir sua voz. Lembrar o que iria dizer a alguém amanhã e cogitar que jamais será dito. Pausa. O enigma da vida se impõe. O corpo perece, mas a alma é imortal. Será? A matéria acaba, mas o espírito continua. Será? A missão na Terra foi cumprida, logo não há mais motivo para viver. Será? Ninguém sabe. Sabemos simplesmente que a certeza é transitória e os serás permanentes. Serão eles a eterna indagação da vida, a leitura incrédula dos dogmas da existência. Nessa era de rápidos avanços tecnológicos, as manifestações de pesar são imediatas: “notícia triste, grande perda, choque, sem palavras, inacreditável. Tadinho...” Pausa. Infelicidade, sofrimento e dor. De quem partiu ou dos que ficam e seguem com perguntas sem respostas, confrontados com a impotência do homem diante da falta de controle sobre a vida? Que ouçam com atenção os que por mim têm apreço. Quero nenhum sentimento de piedade na minha morte. Que sejam inexistentes as expressões ‘coitada’, ‘que pena’, ‘tadinha’. Que sintam minha ausência sim, como sinal de que deixei boas marcas na vida – motivo pelo qual acredito estarmos aqui. Que lamentem minha partida sim – como demonstração de bem-querer por mim. Que lembrem os meus acertos e relevem os meus erros – como símbolo de compreensão da minha condição humana. Que rezem por mim, muito, cada um no seu mais sincero religare: Buda, Cristo, Cosmos – o que for, ou não for. E que então aceitem o meu fim, seja ele súbito ou gradual. Mas que jamais tenham piedade, de mim ou dos que ficarem. Afinal, não há certeza de que partir é pior ou melhor do que ficar. Aos familiares do querido colega, emito pensamentos de tranquilidade e desejo a força da resignação que nos resta ter. Ao Jorge, agradeço a oportunidade de convivência, ainda que pouca, e dedico sentimentos de carinho: minha saudade de uma pessoa de bem, meu lamento por sua breve passagem, minha lembrança do colega íntegro e profissional dedicado. Acima de tudo, dedico a você, Jorge Pineiro, a minha pequena e verdadeira oração: Que a Luz, que creio existir além do que a matéria pode ver, ilumine sua nova jornada. Vá em paz!

sexta-feira, 16 de março de 2012

PERDA e DOR

Na Semana Nacional de Poesia,atrevo-me a publicar três poemas.

HORA MARCADA
É grave.
Porém às dez não mais se agrava
a desgraça que na garota paira.
Às dez, a graça reata.
Às dez, a família grata.
Às dez, não mais grave.
Não mais gravidez.


CIDADE GRANDE
Acorda o dia.
E com ele as mazelas da cidade.
Na esquina do borracheiro,
o pedinte enxuga o suor do rosto
com o pano que limpa os carros.
Em meio ao trânsito caótico,
o motoqueiro ultrapassa
e é lançado ao chão.
Na entrada do túnel,
o rio de esgoto jorra
sobre os veículos apressados.
O prenúncio de mais um dia se faz presente.


(INS)PIRAÇÃO
E foi-se a inspiração,
que, fugaz, aproximou-se e partiu.
Foi-se o sopro de ar
que poderia tudo renovar.
Foi-se antes de nascer
o que jamais deveria morrer.
Ficou a piração do poeta,
enlouquecido pelo vazio do papel em branco.

segunda-feira, 12 de março de 2012

A Super Vó

Ô vóóó, olha o Zéééé!” Era este o grito de socorro emitido por mim e minha irmã à nossa avó materna toda vez que nosso tio exercitava conosco sua criatividade marota.
Nove anos mais velho, Zé era como um irmão travesso e implicante, sempre zombando das pirralhas. Com sua originalidade peculiar, ele criava personagens, letras de música e melodias jocosas para atazanar as sobrinhas. Assim surgiram Espeto e Broa, por exemplo. Espeto nasceu por inspiração numa estampa de camiseta minha, dada a semelhança da caricatura magricela e cabeluda com meu corpo fino e cabelos cheios. Já Broa foi a alcunha criada para minha imã, sardenta e gorducha. Meu tio sentia orgulho por suas criações: Espeto era tão famoso que tinha sua imagem impressa numa peça de roupa. E Broa tornou-se famosa por ser inspiração de um rock nonsense, composto pelo próprio Zé e cantado para as pessoas de casa: a história de uma broa de milho que cai no chão e se esfarela, fazendo-o lembrar de sua sobrinha Ana Cristina.
Bastava Zé entoar o rock ou mencionar a camiseta para a gritaria começar. E no pequeno apartamento da Rua Sacadura Cabral, correndo de dentro da cozinha, lá vinha a minha avó. Alheia à criatividade de seu filho, partia em socorro das pequenas netas. Faca em punho, vovó ameaçava umas pancadas no menino com a face lateral da arma. Fugindo pelo apartamento, Zé trancava-se no banheiro com medo de apanhar. Até que passava o alvoroço, ele saía de mansinho, e nós fingíamos não vê-lo. No dia seguinte a implicância recomeçava, pelo mesmo motivo ou por outro qualquer. E o ciclo se repetia: gritaria, ameaça, correria, calmaria.
O mais curioso é que a vó Hermínia nunca sabia com certeza se o Zé realmente tinha feito algo de errado. Um grito nosso a fazia sair correndo contra ele, estivesse ele errado ou não. E, na verdade, nem sempre era ele o culpado. Muitas vezes nós o provocávamos, instigando discórdia, só como pretexto para que vovó nos socorresse. Adorávamos ver a nossa super vó em cena, protegendo suas netas queridas e indefesas contra o vilão da zombaria. Nossa heroína preenchia nosso mundo de fantasias, não com histórias contadas dos livros, mas com as suas atitudes reais. Sempre que necessário, ela surgia nos protegendo com facas e dentes: a faca tremulando no ar e os dentes rangendo entre gritos de “Para com isso, José! Deixa as meninas em paz!”
Mas o tempo passou e tio Zé cresceu. O amadurecimento do menino arteiro transformou o vilão da zombaria num tio parceiro e camarada. Com isso, deixou de existir o nosso pretexto para pedido de socorro e proteção à vovó. Entretanto, guerreira que naturalmente era, vó Hermínia jamais nos desamparou. Ao contrário, nos ensinou lições de auto-proteção para que pudéssemos nos defender ao longo da vida por nós mesmas. Sua religiosidade nos trouxe ensinamentos de fé e coragem. Sua determinação nos transmitiu a força que a verdadeira vontade tem. E sua generosidade e solidariedade mostraram o quanto preenche a alma pensar no outro. Os valores que dela recebemos sem dúvida constituem grande parte do que somos hoje.
Na próxima terça-feira, dia 13 de março, seria aniversário da nossa super vó. Já faz quatro anos que não mais podemos comemorar com ela essa data. Nossa heroína cumpriu sua missão na Terra e partiu. Certamente vive hoje num reino mágico de fadas e querubins, como imagina a fantasia das crianças. Que os anjos celestes protejam para sempre o nosso anjo protetor!
Um beijo com muita saudade, agradecimento e ternura, querida vovó.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Um brinde à mulher!

No dia de hoje, subo na gangorra narcísica e levo o meu ego às alturas. Deixo de lado a modéstia, a insegurança, a vergonha, e ergo uma taça a mim mesma. Uma taça de vinho. Uma taça do título. A taça da vida! Sim, hoje eu posso. Hoje é o dia internacional da mulher e o meu brinde é a mim mesma, única e especial que sou no mundo.
O instante do meu nascimento registrou a força do meu sexo. Às 23 horas do dia 20 de março de 1967, cheguei rompendo a expectativa do menino aguardado na sala de espera. A revelação se fez através da ênfase no gênero do adjetivo: “Linda! Ela é linda!” – foram as palavras da enfermeira que levou embora a esperança de meu pai em compartilhar com um sucessor os segredos do mundo masculino. Não tinha jeito: ela era linda e iria crescer mulher.
O tanto de decepção do seu Albano foi esquecido ao longo dos anos. A menina mostrou-se carinhosa, imaginativa, sensível, companheira. Ela queria ser forte. E era esperta o suficiente para esconder de si mesma sua emotividade abundante, o que demonstraria fraqueza. Por isso, seus medos eram só seus, suas dores eram sentidas em solidão e suas inseguranças eram encobertas pelo comportamento exemplar. Que anjo de criança!
Era protegida contra os perigos da vida. A querida avó, com quem passava a maior parte dos dias, sequer permitia seu acesso à cozinha da casa, local de risco para uma menina pequena.
Mas, sem que ninguém soubesse, ela observava a chaleira no fogão e sabia que o leite fervente poderia transbordar. Então, escondendo-se de todos, corria para tampar a chaleira, na tentativa de manter o leite contido. Ela desconhecia que o mecanismo não era aquele, e que não adiantaria evitar o transbordar do leite, tamanha era a intensidade da ebulição.
Foi com o tempo que as verdades surgiram. A menina se transformou em mulher e teve a sua própria casa. Custou a aprender a lidar com a chaleira de leite no fogão e sofreu algumas queimaduras. Mas finalmente entendeu que é inútil lutar contra as forças da natureza. Se o fogo é intenso, o leite transborda. Assim, ela aprendeu a chorar e fazer jorrar suas emoções, medos, dores e incertezas. Ela se tornou mais leve. Permitiu-se fragilidade, sem vergonha. O anjo perdeu as asas e soltou os seus demônios.
Outrora avessa à comemoração de um dia destinado à mulher, hoje brindo este dia. Pouco importa se já pensei que essa data reforça um conceito machista. Por que é mesmo que não existe o dia internacional do homem? Pouco importa. Hoje penso que se existe o dia internacional da mulher, vou sim aceitar a homenagem. E apresentar-me ao mundo. Muito prazer: sou forte e frágil, sensível e insensível, doce e amarga, medrosa e destemida, tímida e sem-vergonha, modesta e vaidosa, laboriosa e preguiçosa, certa e errada. Sou mulher.
Um brinde a mim mesma! E agora um brinde a todas as mulheres! Que cada uma de nós seja hoje a primeira pessoa a levantar uma taça em homenagem a si própria - única e especial que cada uma é.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Quarta-Feira de Cinzas

Ao longo dos últimos quatro dias, pensei várias vezes em escrever uma crônica de carnaval. Ideias vieram e se foram, sem nenhuma vingar. Pensei em escrever sobre a paixão que sempre tive pelo Carnaval e como esse amor de infância surgiu.
Não sei exatamente quando e nem por que meu interesse pelo samba começou. Só lembro uma vontade louca de aprender a sambar ainda bem novinha. Com os meus doze anos, eu sambava com um pé só e sabia que não sabia sambar. Foi passado o carnaval daquele ano, que consegui sambar com os dois pés. Lamento profundo por não mais poder exibir-me com pés de passista – naquele ano, pois tantos outros carnavais viriam pela frente! Matinês no Clube Imperial de São Cristóvão, bailes no Clube Municipal e pre-carnavalescos do Clube América iriam despertar em mim o desejo profundo de desfilar em uma escola de samba. Portela, a escola do coração, era o meu sonho de consumo! Por que a escola de Madureira, tão distante de mim? Não sei. Amor não se explica, simplesmente se deixa fluir. E foi deixando fluir meu amor ao samba, que o Salgueiro entrou na minha vida. A frequência constante aos ensaios da vermelho e branco me fizeram trair a azul e branco definitivamente.
Foram quinze anos de sábados sob tamborins, chocalhos, repiques, caixas e tudo mais que sempre arrepiou, literalmente, a multidão da quadra da Rua Silva Teles. Nos quatro dias passados, pensei em escrever sobre a emoção dos desfiles – cada vez como se fosse a primeira, os integrantes apaixonados que não mais estão conosco ou as histórias engraçadas que aconteceram em torno da avenida. A perda da lente de contato durante o desfile, a inexistência de banheiros em momentos de necessidade urgente e - a melhor de todas - a troca das camisas tamanhos G e P. Aquele episódio daria uma boa história!
Domingo de carnaval, dia do desfile oficial do Salgueiro. Nervosismo típico de um presidente de ala dedicado à escola e paciência típica de sua esposa - O que restaria a ela fazer? Desde a manhã do dia, a mesma ladainha de todos os anos: Vou sair cedo de casa e quem quiser que me acompanhe. Não posso atrasar para a concentração. Preciso receber os integrantes da ala. E blá, blá, blá. No início da tarde, experimento minha camisa para confirmar, com antecedência, que está tudo certo. Faz alguns anos que não saio mais de fantasia, cansada que estou dos resplendores e adereços. Agora saio como diretora da ala. Livre, leve e solta.
Ao experimentar a camisa, uma ingrata surpresa: tamanho gigantesco para o meu corpo pequeno! Pânico na tarde de carnaval. Trocaram o meu tamanho! Como vou desfilar assim? E eu não posso atrasar, se não blá, blá, blá. Socorro da tia daqui, socorro da mãe dali, e recebo ajuda para o acerto da minha camisa. Rapidamente ela está reduzida ao meu corpo. Ufa! Tudo pronto a tempo. Camisa adequada, passada e pendurada, aguardando o momento da partida para a avenida.
O horário se aproxima. Vou começar a me arrumar e quem quiser que me acompanhe. Não vou esperar por ninguém. Tenho compromisso. E blá, blá, blá. Eis que Roberto veste a camisa e emite um urro, um grito feroz de indignação. Corre minha mãe, corre minha tia, corro eu. O que será que aconteceu? E vemos Roberto no quarto, comprimido numa camisa que mal lhe permite mexer os braços. Minha mãe gélida, minha tia pálida e eu trêmula. A camisa que eu experimentei à tarde não era a minha. A camisa que foi apertada não era a minha. A camisa que teve o tamanho reduzido era a DELE! E como o presidente vai desfilar daquele jeito? Com o peito apertado e os braços tolidos, sem poder mover-se durante a evolução da ala? Equipe de resgate a postos, mãe e tia se movimentam rapidamente. Tesoura daqui, alfinete dali e minha mãe consegue abrir alguns dos pontos dados. O que havia sido alinhavado pode ser salvo, o que havia sido cortado, foi-se. Parcialmente justa, parcialmente solta, a camisa permite agora ao menos algum movimento de braços.
Hora da partida para a concentração. Conseguimos sair a tempo, apesar dos pesares. No metrô, eu com minha camisa no devido tamanho e minha mãe e minha tia, com suas devidas fantasias, nos sentamos afastadas do presidente com sua camisa torta. De longe, podemos percebê-lo falando sozinho, resmungando e retorcendo a camisa, na esperança de ajeitá-la. Na concentração, outros presidentes de ala reclamaram da costura mal-feita naquele ano. É cara, vacilaram na costura esse ano. Tá tudo mal acabado, esquisito. Olha a sua camisa! Toda desengonçada! E assim a responsabilidade sobre a camisa torta foi creditada às costureiras do barracão.
Foram muitas as histórias de carnaval. Dos bailes nas tardes de sábado e terça aos desfiles nas noites de domingo e segunda, muita coisa eu poderia contar. Mas, nestes quatro dias de carnaval, as ideias vieram e se foram, sem nenhuma vingar. Hoje, quarta-feira de cinzas, sento-me para organizar algumas lembranças no computador. E eis que surge este texto, ainda que tardio, uma crônica de carnaval.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Frágil

Noite de verão ameno e chuva fina. Garrafa de vinho como sempre na despensa, aguardando a companhia de um bom DVD. Uma busca na locadora me apresenta o filme até então desconhecido: Paris. Nada mal rever a cidade que tanto me encantou há um mês em minha viagem à Europa. Foi essa a motivação de levar para casa ontem o filme de Cedric Klapisch, estrelado por Juliette Binoche e outros excelentes atores franceses.
O filme em nada nos decepcionou em relação às expectativas de trazer lembranças tão vivas à memória. O passeio pela cidade de Paris é completo, fazendo quem conhece a cidade reviver sua magia e quem não a conhece, querer pegar o primeiro avião para lá, como bem diz a crítica na capa do DVD. A boa surpresa foi a história em si e como ela se apresenta. São diversas amostras das vidas de desconhecidos que de alguma forma se entrelaçam em torno de uma história central: um rapaz jovem que recebe de seu médico a notícia de que uma doença no coração irá roubar-lhe a vida em pouco tempo.
Embora possa parecer um tema piegas, não há pieguice no filme. Olha que eu sou uma manteiga derretida, daquelas que se controlam para não chorar copiosamente numa cena banal de reconciliação entre namorados apaixonados. Entretanto, em nenhum momento sequer um nó na garganta me surgiu. O filme é leve, agradável, flluido. E por isso mesmo faz pensar. Se fossem cenas sentimentaloides, a emoção exacerbada poderia encobrir um enredo aparentemente pouco original. Mas não é o caso. São retratos da vida de pessoas como eu e você. E, mais que isso, a estampa de quão frágil a vida é. A imprevisibilidade é destacada logo no início, com o resultado da ultrassonografia revelando o fim de quem se espera viver por muito tempo ainda. E não pára por aí. Uma situação inesperada envolvendo outra personagem ocorre, expondo mais uma vez o débil fio que nos anima.
É incrível que possamos aceitar, ainda com certa resistência, a idéia da morte consequente do tempo que deteriora e faz sucumbir. Sabemos que tudo que é matéria se desgasta e podemos prever o tempo da deterioração material. A madeira apodrece, o ferro enferruja, e os órgãos do corpo humano falem. O que nos recusamos a aceitar, entretanto, é que qualquer matéria é frágil o suficiente para ruir antes do tempo esperado. Um objeto de madeira pode ser infestado por cupim, estruturas de ferro podem ser prejudicadas pela maresia, e o coração pode ser acometido por uma doença irremediável. A fragilidade pode também se expor diante de uma intenção: o tronco de madeira ceifado, o ferro incendiado, o corpo esfaqueado. Por mais que se busquem os culpados pela devastação da floresta, pelo incêndio no prédio ou pelo assassinato da pessoa, a matéria está desfeita. E nada traz a vida de volta.
Muitas vezes creditamos à injustiça divina ou à irresponsabilidade humana a causa da perda da vida, pois precisamos de paliativos para acalentar nossos corações sufocados de dor. Mas, na verdade, buscamos razão para o irracional.
No filme de ontem, o jovem à espera da morte torna-se reflexivo sobre a sua vida e a dos outros, aproxima-se da irmã de quem se distanciara, conta para a namorada de infância o quanto ela foi importante e reúne amigos numa comemoração sem motivo especial. Enfim, diante da constatação premente do que nos recusamos a aceitar, ele parece adquirir consciência dos valores que realmente importam: os laços afetivos e a verdade consigo mesmo. Ele se recusa a iludir a si próprio, e admite por completo a realidade que todos nós queremos ocultar de nós mesmos.
Afinal, por mais difícil que seja, viver verdadeiramente é romper qualquer tipo de ilusão e encarar o maior medo que se tem na vida: o medo da morte.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Goodbye, London!

A viagem do centro de Londres ao aeroporto de Heathrow costuma ser um tanto longa, não só pela distância como pelo volume de carros em determinados horários. Às onze da manhã de segunda-feira, no entanto, passada a hora do rush matinal, o trânsito flui bem, e o trajeto torna-se mais curto do que o usual.
Ao longo dos quarenta minutos do percurso, aprecio a sequência de imagens que me invadem os olhos e despeço-me da Inglaterra. Os alunos do nobre bairro de Holland Park, que por duas semanas vi seguirem para a escola nas manhãs frias e cinzentas, terminam as aulas do dia e seguem em grupos para casa. O sol bronzeia as árvores secas, dourando seus galhos despidos pelo frio. A tela azul do céu é pincelada de branco nos traços deixados pelos aviões. Os carros vindos pela direita, em direção contrária ao taxi que me conduz, já não me trazem a estranheza de semanas atrás.
Definitivamente, quinze dias não é tempo suficiente para se modificarem os hábitos de uma vida, mas certamente podem nos trazer mudanças, especialmente se vividos com intensidade. Assim foram os meus dias de passeio por Londres e arredores: longos, extensos, intensos. Foram muitos os assuntos dos eventos em solo inglês: história, arte, gastronomia, natureza, multiculturalismo. Cada um vivenciado com imenso prazer, lenta e profundamente. Ao pensar no dia de ontem, preciso parar para lembrar o que fiz. Confundem-se lugares na minha mente e sensações no meu corpo. Até que chegam imagens e impressões mais nítidas: penhascos esculpidos em giz branco, mar rajado de dourado, céu de azul irretocável, ampla área de gramado verde, vento gelado nas faces, vontade de correr com os pés no ar e voar, sensação de liberdade. Penso na imensidão da natureza, no poder das forças desconhecidas e na pequenez da condição humana. Lembrei-me, afinal: Ontem, a caminho da cidade de Brighton, visitei Seven Sisters, a incrível cadeia de sete penhascos ao sul da Inglaterra.
A soberania da natureza de Seven Sisters leva meu pensamento a Stonehenge, o inexplicável monumento de pedras de cinco mil anos de idade. Não se sabe por que as pedras foram dispostas em círculo, quem as colocou onde estão ou como foram transportadas. Novamente penso nos mistérios da vida e o diminuto tamanho do homem diante do universo. Quando foi mesmo que visitei Stonehenge?
Das belezas naturais, meu pensamento se desloca para as construções históricas. Lembro a Abadia de Westminster e suas paredes seculares, seus túmulos régios e seus memoriais de personalidades da história britânica. Penso no quão grandioso o homem pode ser para toda a humanidade, mas também como a história de cada um de nós, inevitavelmente, termina. Seja em túmulo banhado a ouro ou em túmulo algum, todos temos o mesmo fim. Qual foi mesmo o dia em que visitei a Abadia de Westminster?
À medida que o taxi se aproxima do aeroporto, um mosaico de imagens se forma em meu pensamento: Covent Garden, Tower Bridge, Borough Market, Tate Modern, Tower of London, British Museum, Portobello Road ... E um amálgama de sensações se apodera de mim: Surpresa, espanto, melancolia, saudade, alegria. Riso, choro, cheiro, gosto. Quando foi mesmo que visitei esses lugares? Ontem? Semana passada? Há treze anos, quando estive pela primeira vez na Inglaterra?
Penso então na necessidade que temos de delimitar o tempo, definir quando algo aconteceu e o quanto durou. Como se o valor de uma experiência se medisse por ser ela mais ou menos próxima, mais ou menos longa. Pois digo que, de imediato, não sei responder quando visitei cada lugar. Não sei ao certo quantos minutos ou horas se passaram enquanto estive em cada um. Mas sei dizer que vivi cada lugar intensamente. Cada minuto como se fossem horas. E com certeza este é um importante insight que tive nestes quinze dias: intensidade não se mede pelo relógio, mas pela entrega ao momento presente. O que fiz mesmo ontem? E anteontem? Não sei bem. Sei sim o que faço agora: Deixo fluir as impressões que me impregnaram o corpo e a alma nestes últimos dias.
O taxi finalmente chega ao aeroporto de Heathrow. Retiro as malas pesadas por tentarem reter as lembranças da viagem. Olho mais uma vez o céu claro e admiro o dia de sol, despedindo-me de Londres. Atravesso a porta automática e sigo em direção ao balcão de check-in. Deixo para trás os lugares que visitei e levo pela frente as sensações que cada um me causou. Goodbye, London!

domingo, 1 de janeiro de 2012

O que se leva da vida?

A pergunta é um grande lugar-comum, mas é ela que me vem à mente ao sentar-me na pequena poltrona da sala deste pitoresco apartamento na Boulevard Saint Michel, número 34, em Quartier Latin. Após arrumar as malas que me acompanharão na partida da França amanhã, sento-me para descansar um pouco e ouço as badaladas do sino de uma igreja próxima soarem doze vezes: meio-dia de primeiro de janeiro de 2012. Olhando o céu cinza claro e brilhante de Paris através da janela que me protege contra o frio, lembro-me da luminosidade dos quadros de Van Gogh deixados ontem no Musée d’Orsay.
E me chega ao pensamento a pergunta: O que se leva da vida?
Afrouxo os músculos cansados das caminhadas dos últimos dias, desfruto o aroma do brie da manhã ainda pairando no ambiente, fixo o olhar nas chaminés dos telhados vizinhos e me entrego ao silêncio do momento. O que se leva da vida? Surge uma nova imagem diante dos meu olhar perdido. Esta agora repleta de detalhes e informações. Para apreciá-la, concentro-me em suas minúcias como os entalhes dos portais da monumental Notre Dame: Noite clara e fria, iluminação festiva no pier número 7, ambiente de meia-luz no interior da embarcação. Suave música francesa na voz de mulher, notas de contra-baixo, acordes de violão e piano. Mesa para dois na lateral envidraçada. Rosas vermelhas e contas transparentes e negras sobre a toalha branca. Kir royale, vinho branco, vinho tinto e champagne acompanhando pratos de degustação. As águas do Sena refletidas no teto de vidro e o deslizar suave do bateaux. As mais belas construções da Cidade Luz nos saudando às margens do rio. Ponte Nova, pontes velhas, Ponte Alexandre. Variadas nacionalidades reunidas na noite de réveillon: Anas, Anettes, Annies brindando o novo ano.
O que se leva da vida? Bem, na tentativa de compartilhar a magia de estar em Paris às vésperas do ano novo, deixo a minha resposta: Leva-se da vida a fé nas coisas boas que certamente virão – ainda que o céu esteja cinza (claro ou escuro). Leva-se da vida o reconhecimento das conquistas individuais – ainda que elas não sejam monumentais. E, acima, de tudo, leva-se da vida o eterno agradecimento pela oportunidade de viver!
Que em 2012 nós saibamos responder a pergunta tão lugar-comum de uma forma realmente especial e única! Bonne Anné!