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quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Os Previteras

Eles fizeram parte da minha história. Especialmente Ledinha, uma das filhas de um casal com um menino e duas meninas. Os cinco moravam no centro da cidade, Edifício Três de Outubro, apartamento 303, vizinho ao da minha avó.
Embora minha razão infantil não tivesse consciência do porquê, a família me inspirava um sentimento desconhecido e agradável. Na verdade, era o despertar da minha sensibilidade, permitindo-me intuir a os laços de afetividade que me uniriam por anos àquelas pessoas.
Seu Gilberto era o provedor da casa. Trabalhando num quartinho ao pé da cozinha, vivia rodeado de quinquilharias eletrônicas inacessíveis e deslumbrantes. Fios, cabos, fusíveis, válvulas, antenas, pilhas e um mundo de miniaturas coloridas transformavam-se em cidades futuristas ou planetas robóticos na minha imaginação. O ofício de consertar rádios complementava a renda de um militar reformado precocemente. Era um homem reservado, com mãos e olhos focados no seu mundo iluminado pela lâmpada de um fio pendurado sobre a mesa.
Dona Leda cuidava da casa e dos filhos. Alegre, expansiva e bem-humorada, tinha sempre algum assunto para conversar com minha avó. Para ajudar o marido nas despesas da família, fazia bolos de aniversário. Foi com ela que minha mãe aprendeu a fazer e confeitar os bolos dos nossos aniversários.
Jorge, a criança mais velha, era muito semelhante ao pai em aparência e temperamento. A pele parda, os cabelos crespos e o nariz núbio guardavam criatividade, discrição e certo sarcasmo, que vim a conhecer quando eu já tinha mais idade. A habilidade com aparelhos eletrônicos, herdada do pai, revelou-se através dos aparelhos de som, que Jorge manuseava com facilidade ao tocar os discos que colecionava. Distantes, como éramos na época, eu mal podia imaginar que na minha adolescência nós iríamos estar juntos algumas vezes para dividir o mesmo gosto pela pista de dança.
Inês era a filha do meio. Misturada em aparência com o pai e a mãe, era arteira, desafiadora e namoradeira. Inês não pertencia ao meu mundo de faz-de-conta na sala do apartamento. Ela pertencia ao mundo dos piques na rua, que eu era impedida de frequentar pelos meus pais. É incrível como sete anos de diferença são um abismo de tempo quando se tem cinco ou seis anos de idade!
Já Ledinha, a caçula, era parte integrante do meu mundo. E muito mais do que isso, ela era a minha melhor amiga. Minha primeira amiga! Tendo um ano a mais que eu, Ledinha era muito experiente e me ensinava coisas que eu não sabia. Minha irmã, a mascote do trio, ficava enciumada quando nós duas conversávamos coisas de meninas grandes, que Cristina não podia ouvir. Mas logo estávamos as três brincando e o ciúme passava.
As brincadeiras aconteciam todas as tardes no apartamento da vovó, com o mesmo código de começo e fim: batidas na parede que dividia um apartamento do outro. Vovó dava o sinal de início, indicando quando Ledinha podia vir e Dona Leda dava o sinal de término, indicando quando ela deveria voltar para casa. Ao final da tarde, lá se ia a minha amiga, levando consigo as marias-chiquinhas curtas e as covinhas de menina travessa. Nossas mãozinhas balançavam no ar num sinal de despedida até o dia seguinte.
Foram muitos anos de brincadeiras e cumplicidade, até que a família vizinha mudou de endereço. Foram morar na Ladeira João Homem e nosso contato diário se desfez. Algum tempo depois, meus pais, minha irmã e eu nos mudamos de bairro. Foi então que a distância entre mim e os Previtera ficou ainda maior. Nosso contato praticamente se perdeu, seguido da perda do Seu Gilberto e, anos depois, da Dona Leda.
Das brincadeiras no Três de Outubro até hoje, foram muitos os caminhos que se apresentaram na estrada da vida. Jorge e eu estivemos juntos em alguns momentos da minha adolescência, mas nos perdemos pela estrada. Reencontrei Inês na minha fase adulta, quando pudemos finalmente compartilhar os nossos mundos, já não tão diferentes. Quanto à minha primeira amiga, estivemos juntas na adolescência mas fiquei muitos anos sem saber os seus caminhos a partir dali. No entanto, laços tão fortes de afetividade não permitem que as pessoas se percam por completo. Nosso reencontro aconteceu com um presente para cada uma de nós: ela me presenteou com sua filha e eu a presenteei com a minha. Atualmente, passamos por períodos de maior ou menor aproximação ou afastamento, dependendo dos nossos percursos. De qualquer modo, acenamos sempre uma para a outra, como no final das brincadeiras de criança, sinalizando um até-breve.

6 comentários:

  1. Lindo o meio que não determina, mas que possibilita laços, e não "nós",proveitoso e doce as lembranças de criança, eu tive contato com essa família, também admirei muito e ao longo dos anos também nos perdemos, era mais próxima do Jorge, hoje lendo, caminhei por algumas nuvens, nuances, temperança.. bjs, obrigada pela viagem

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  2. Acho que todos nós, ao lermos, embarcamos nesta viagem e nos sentimos voltando no tempo e recordando amizades antigas com famílias vizinhas, que também tinham crianças e que brincavam conosco. Cada um na sua viagem, cada um com seus personagens. Mas todos neste grande barco da vida festejando a alegria de estarmos juntos!
    Parabéns, meu amor! Foi a primeira de muitas que lerei. Agora já sei onde ir quando quizer me deleitar com boa leitura. Bjim.

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  3. Retificando: quiser*

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  4. Estou emocionada! Me fez recordar pessoas que passaram pela minha vida e que também foram levadas para longe pelas circunstâncias inevitáveis... Esse ir e vir de pessoas especiais é o que dá graça à vida! Adorei, super beijos!

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  5. Lindo texto,Ana. Emocionante! Assim como alguém já comentou antes aqui, também me fez lembrar muito da minha infância...que maravilhoso! Bjks!

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  6. Ta uma cronista de mão cheia a minha blogueira amada!!!

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